“Em educação, mais e antes nem sempre é melhor”

Para autora do livro "Educar na curiosidade", uma criança sempre ocupada e que não pode escolher espontaneamente suas atividades jamais será um indivíduo proativo


Educar na curiosidade
Catherine L'Ecuyer, autora do livro "Educar na curiosidade: a criança como protagonista de sua educação"

Em um mundo frenético e cada vez mais exigente, quanto maior for a oferta de atividades que direcionam a aprendizagem e mais cedo elas foram apresentadas para a criança melhor será seu desempenho na vida, correto? Errado!

No livro Educar na curiosidade: a criança como protagonista de sua educação (Edições Fons Sapientiae), a autora Catherine L’Ecuyer alerta para esse tipo de entedimento equivocado sobre educação infantil. Com lançamento previsto no Brasil para agosto, durante a Bienal do Livro de São Paulo, a obra voltada para pais e educadores defende a importância da criança entediar-se, brincar livremente, encantar-se com o banal e não tornar-se refém de fontes externas de estímulos como os aparatos digitais.

Em conversa com Carta Educação, a especialista nascida no Canadá e radicada em Barcelona falou sobre a necessidade de desacelerarmos a rotina das crianças, dando espaço e tempo para o despertar da curiosidade e do encantamento com o entorno para um desenvolvimento mais pleno. “A criança que anda entre um estado de tédio e de ansiedade ante a realidade tem um problema pela frente porque a aprendizagem é lenta e requer esforço”, aponta.

Carta Educação: Recentemente, temos discutido muito a importância da criança ser protagonista de seu processo de aprendizagem. Mas o que isso significa na prática? Como, nas interações cotidianas, a criança pode assumir esse papel?

Catherine L’Ecuyer: A criança tem um motor interno que a leva a conhecer, ela tem um encantamento, uma curiosidade inata. Por filosofia, a curiosidade se define como “o desejo de conhecer”. Nesse sentido, ninguém pode incutir, forçar alguém a querer algo. Por isso, o modelo conducionista que considera a criança como um ente passivo é um fracasso educativo. A brincadeira desestruturada, por sua vez, é peça-chave na Educação Infantil; os estudos mostram que favorece o desenvolvimento das funções que são necessárias para o bom desempenho escolar. A criança é um verdadeiro mistério cheio de paradoxos: filosofa antes de falar, explora antes de caminhar e compromete-se antes de ter força de vontade. Isso tudo desconcerta os adultos que, muitas vezes, olham para as crianças com seus próprios paradigmas. A criança não é um adulto inacabado. É uma criança.

CE: As crianças de hoje têm mais dificuldade para estabelecer laços afetivos?

CL: O modelo de apego se estabelece na primeira infância. Esse primeiro vínculo com o principal cuidador é que faz com que a criança tenha uma melhor disposição para desenvolver outras relações afetivas saudáveis ao longo de sua vida. O vínculo de apego é um vínculo de confiança que se estabelece quando o principal cuidador atende às necessidades básicas da criança. Por esse motivo, é importante investir muito tempo na primeira infância, pois é uma etapa que tem grande repercussão no resto da vida.

CE: De um lado, temos a defesa de uma educação que acolhe a criança, que é afetiva. De outro, de que os pais precisam ser estritos e aprender a dizer não para seus filhos. Como combinar essas duas dimensões?

CL: É essencial refinar por idade. Antes dos dois anos, não podemos exigir de forma inflexível nada à uma criança, porque ela necessita receber atenção para suas necessidades básicas, que são tanto fisiológicas como afetivas. A resolução dessas necessidades permite à criança receber duas mensagens: 1) valho a pena porque me atendem, pelo menos sou competente e tenho autoestima e 2) posso confiar no meu principal cuidador, o mundo não é hostil.

Depois dos dois anos, quando o modelo de apego está consolidado, podemos começar a exigir, mas pouco a pouco e de forma gradual. No entanto, é importante entender que a criança ainda não tem força de vontade consolidada, assim é incongruente exigir dela como se tivesse. Em qualquer caso, não tem sentido deixá-la fazer tudo que quer sempre. A criança tem que entender, de forma natural, que existem limites que devem ser respeitados. Montessori dizia que deixar a criança fazer o que quiser sempre é trair o próprio sentido da liberdade.


CE: E os castigos e as recompensas, como ficam?

CL: Exigir não significa propor castigos e recompensas. Se a criança é apegada ao seu principal cuidador, será suficiente um olhar carinhoso de desaprovação. O que ocorre é que hoje em dia as crianças são tão superestimuladas que nem sequer percebem esses olhares. Como diz o provérbio, “quem não entende um olhar, tampouco entende uma longa explicação”.

CE: Muitos pais têm sobrecarregado seus filhos com atividades extracurriculares preocupados com o currículo perfeito desde cedo. Como a senhora vê isso?

CL: Hoje, as crianças se parecem com pequenos executivos estressados. É verdade que, às vezes, não há outra alternativa senão a de colocá-las nessas atividades porque trabalhamos e não sabemos onde deixá-los depois do colégio. Mas muitas vezes o fazemos porque pensamos que “mais e antes é melhor”. A literatura acadêmica nos diz que em educação, mais e antes não é necessariamente melhor. Essa crença é um ‘neuromito’. Um neuromito é uma má interpretação de uma literatura neurocientífica aplicada no âmbito educativo. As crianças necessitam de tempo para entediar-se e para a brincadeira desestruturada. Uma criança que tem sempre algo para fazer e que não pode escolher espontaneamente uma atividade é uma criança que não será jamais proativo, dependerá sempre de fontes de motivação externas e não internas.

CE: A senhora diz que a educação pela curiosidade é incompatível com a hiperducação que pretende antecipar estágios do desenvolvimento cognitivo, social e afetivo da criança para criar “supercrianças” ou “bebês Einsteins”. Poderia explicar isso?

CL: Quando as crianças entram no que eu chamo de “círculo vicioso da diversão”, sua curiosidade adormece. Passam a depender de fontes de estímulos externas e deixam de encantar-se com o banal. Buscam sensações novas cada vez mais intensas. Podem até mesmo desenvolver vícios. Existem estudos que relacionam as horas passadas diante da televisão antes dos 3 anos de idade com a falta de atenção aos 7 e outros que relacionam as horas vendo televisão com uma redução do vocabulário. As crianças pequenas não aprendem com as telas, mas com o cotidiano, com o real e as interações interpessoais. E o real é lento.

A criança que anda entre um estado de tédio e de ansiedade ante a realidade tem um problema pela frente porque a aprendizagem é lenta e requer esforço. As crianças têm uma energia natural para o esforço. Se estão em um entorno favorável, se esforçam com naturalidade. Quem nunca observou a concentração com que uma criança transporta um copo d’água de um lugar a outro?

CE: Que tipo de ambiente pode favorecer essa concentração?

CL: Um espaço bonito. O contrário da distração é a atração. O que atrai é a beleza. A curiosidade não se desperta, se respeita. A fascinação que as novas tecnologias despertam é passiva, não ativa. As crianças nascem com o desejo inato de conhecer. Faz falta rodear as crianças de um entorno que respeite esse encantamento, com um ritmo que se ajusta a seus ritmos internos, as etapas da infância, a suas necessidades de limites, sua sede de beleza e de mistério.

Carta Educação