Nossos falsos profetas encontram-se em crise. Enquanto cientistas e autoridades recomendam quarentena e isolamento social para conter a transmissão do coronavírus, muitos pastores evangélicos se acham capazes de vencer aos berros a pandemia; desafiam a natureza, o diabo e o mundo, remando eternamente contra a maré imaginária da qual se nutrem, e profetizam saúde e prosperidade aos que, como eles, embarcarem na Cruzada contra as forças infernais.
Suas confusas teologias, que veem na pandemia ora um castigo divino, ora um ataque satânico, foram coroadas pela convocação de seu grande ídolo. O falso messias Bolsonaro, vendo-se impotente e isolado em sua sanha suicida, convocou um jejum nacional para domingo (5), transportando-se para a única arena na qual ainda lhe resta algum poder: a da imaginação. Ele logo foi acompanhado por apóstolos que, indiferentes à batalha encarniçada dos hospitais, profetizaram prosperidade para toda a nação após a pandemia. Antes de discutir tamanhas boas-novas, no entanto, devemos entender o que é o ato da profecia.
A natureza da profecia
O profeta bíblico, ao contrário do que dita o imaginário popular, não é um vidente a prever o futuro. Essa habilidade é somente uma entre muitas, todas a orbitar sua real função: a de mediador entre Deus e os homens. O profeta representa a vontade divina aos homens, assim como a vontade dos homens a Deus; sendo boca tanto a um quanto a outro, ele não contenta-se em transmitir recados, mas busca aplacar a divindade e corrigir a humanidade.
Tal correção é justamente a vontade divina, que deseja ver o mal extirpado de Seu povo. Este mal, no entanto, não se resume à idolatria:
“Ouvi isto, vós que anelais o abatimento do necessitado; e destruís os miseráveis da terra. Dizendo: Quando passará a lua nova, para vendermos o grão, e o sábado, para abrirmos os celeiros de trigo, diminuindo o efa, e aumentando o siclo, e procedendo dolosamente com balanças enganosas. Para comprarmos os pobres por dinheiro, e os necessitados por um par de sapatos, e para vendermos o refugo do trigo? Jurou o Senhor pela glória de Jacó: Eu não me esquecerei de todas as suas obras para sempre.” (Amós 8:4-7).
A existência de pobreza e injustiça, tida como natural pelo cristão moderno, é uma ameaça ao cosmos para o profeta que, sentindo o que Deus sente, vê em cada homem oprimido a morte de Deus; a miséria do dia-a-dia não é trivial, mas trevas na existência do mundo, que deve ser corrigido ou enfrentar a ira do Deus ferido. O profeta é “um homem que sente ferozmente”, como diz Heschel:
“Deus lançou um fardo sobre seu espírito, que se vê prostrado e paralisado diante da feroz ganância do homem. Assustadora é a agonia do homem; nenhuma voz humana pode transmitir a plenitude de seu terror. Profecia é a voz dada por Deus à agonia silenciosa, uma voz ao pobre saqueado, às riquezas profanadas do mundo. É uma forma de viver, um ponto de intersecção entre Deus e o homem. Deus ruge através das palavras do profeta.”
A profecia não é, portanto, artefato em posse de hierarcas que, confortáveis em poltronas e púlpitos, tranquilizam seus fiéis com promessas de paz e segurança enquanto asseguram rendas financeiras e influência política. Ela é fardo pesado, corrosivo e insuportável, que leva seus portadores às valas mais baixas do mundo para erguer quem lá se deita ou aos mais altos tronos para condenar quem os ocupa. Profecias de paz são grande responsabilidade ao profeta (Jr 28:8-9), pois levam ao conforto e à estagnação ao invés de ao arrependimento, sendo comumente proferidas por falsos profetas que se beneficiam do status quo.
O profeta e o bezerro
O melhor exemplo do papel conflituoso e impossível de um profeta encontra-se em Moisés, paradigma supremo da mediação entre homem e Deus. Destaca-se uma narrativa em particular, encontrada em Êxodo 32-34, que trata da primeira grande crise causada pela desobediência de Israel a Deus.
A história é conhecida: Moisés sobe ao pico do Sinai, com o povo acampado à sua volta, e por quarenta dias desaparece na nuvem de glória divina para receber instruções e mandamentos. A aliança fora firmada (Ex 24), pacto de sangue entre Deus e o povo; este deseja ter o divino perto de si, e Deus honra tal vontade, instruindo Moisés meticulosamente quanto à construção de uma morada Sua, o santuário, em meio ao povo.
O povo, no entanto, está impaciente. Tendo perdido por quarenta dias seu elo humano com os céus, deseja ter perto de si um artefato que lhes assegure a presença divina. Desejam não a Deus, mas algo que O represente e lhes conforte; algo que, desprovido de vontades ou personalidade, mantenha-os eternamente seguros de estarem no caminho certo. Relacionamentos são incertos e trabalhosos, seja com homens ou deuses – mais compensa ter objetos sagrados que, sem qualquer agência própria, deixem aos homens o controle do universo.
O contraste é gritante. Enquanto Deus instrui a construção de um santuário que Lhe sirva de morada, tenda de ouro a ser santificada por Sua presença, o povo constrói sua própria divina morada – também de ouro. Enquanto Deus instrui o sacrifício de animais nos altares de Sua tenda, o povo confere a um animal – o bezerro – a condição de sagrado. O povo constrói seu próprio antissantuário, criatura dourada de poder inerente e manipulação consciente, e nasce assim o paradigma bíblico da idolatria.
Deus percebe o que se passa lá em baixo e, indignado, o conta a Moisés – e aí brilha a genialidade da narrativa. Numa série de diálogos densos e emocionalmente carregados (32:7-14, 31-34; 33:12-23; 34:1-10), Deus e Moisés discutem o destino de um povo ímpio e rebelde. Deus fala que o povo é de Moisés; Moisés fala que o povo é de Deus. Deus se propõe a aniquilar todo o povo de Israel e fazer de Moisés uma nova grande nação; Moisés, numa argumentação de fina retórica e compreensão política, faz com que Deus mude de ideia com base no golpe dado a Sua reputação. “O que diriam outros povos da Terra? Que escolhes nações para matá-las no deserto?” O profeta põe-se a tal ponto no lugar do povo que chantageia Deus: “se não perdoardes seu povo, apague também meu nome do Seu livro”. O ultimato do profeta é claro – ou adotas a nós todos, ou não sobrará ninguém. Não há limites para a ousadia de quem quer salvar vidas diante de Deus.
A profecia, é claro, é via de mão dupla. Ao descer do monte e ver com os próprios olhos o que Deus lhe dissera, Moisés não pode senão sentir na carne a ira que Deus sentia, representando-a poderosamente diante do povo. Despedaçando o bezerro e misturando-o à água, o profeta faz com que todo o povo beba de seu próprio ídolo – e então mata três mil idólatras do povo de Israel. O profeta ruge por Deus e chora pelo povo – ou será o contrário?
O profeta e a baleia
Tal narrativa consagra Moisés como paradigma de profeta e exemplo de mediação. Não surpreende, então, que as histórias de outros profetas na Bíblia sejam contadas sob sua sombra – destacando-se, entre todas, a famosa história de Jonas. Conhecido por ter sido engolido e vomitado por um peixe, pouco mais é lembrado a respeito de sua curta e cômica história.
Jonas é um profeta ordenado por Deus a pregar contra Nínive, grande cidade estrangeira cuja maldade teria subido até Deus. Jonas, no entanto, nega-se e foge para o mar – preferindo a morte à obediência, dorme no barco em meio à tempestade, e pede que os marinheiros o joguem no mar ao invés de levá-lo de volta. O peixe que engole Jonas é intervenção divina que não só salva sua vida, mas ressalta sua impotência – Jonas sequer pode morrer enquanto não cumprir sua missão. Os motivos de Jonas, por enquanto, permanecem um mistério.
Após uma oração bela demais para alguém tão rebelde (Jonas 2), o peixe vomita o profeta de volta à terra – nem peixes tem estômago para tanta hipocrisia – e Deus ordena-lhe novamente que pregue contra Nínive. Dessa vez Jonas obedece, mas o faz pela metade. Chegando a Nínive, cidade tão grande que leva três dias para ser cruzada a pé, Jonas prega somente pela distância de um dia, e com uma única mensagem: “mais quarenta dias, e Nínive será subvertida!” O resultado, no entanto, é oposto. Toda a cidade se arrepende e todo o povo, incluindo desde seu rei até seus animais, entram em jejum, e Deus resolve não mais destruir a cidade. Nínive foi, de fato, subvertida – mas era essa a subversão que Jonas desejava?
O último capítulo deixa claro não somente o que Jonas queria, mas o motivo pelo qual fugira em primeiro lugar. Indignado pela demora na destruição da cidade, o profeta monta acampamento a leste da cidade, esperando para vê-la destruída, e finalmente abre o jogo:
“E orou ao Senhor, e disse: Ah! Senhor! Não foi esta minha palavra, estando ainda na minha terra? Por isso é que me preveni, fugindo para Társis, pois sabia que és Deus compassivo e misericordioso, longânimo e grande em benignidade, e que te arrependes do mal.” (Jonas 4:2)
A paródia finalmente mostra suas cores: Jonas foge não por covardia, mas porque conhece seu Deus e sabe de Sua piedade. A descrição que Jonas faz de Deus é, verbatim, a revelação que Deus faz de Seu nome a Moisés no clímax da história acima (Ex 34:6-7). Jonas é consagrado como antiprofeta, paródia de Moisés; é aquele que deseja a estagnação e destruição do outro, julgando-se único merecedor da misericórdia divina, e que só sabe mediar a si mesmo diante de Deus.
Podem bezerros jejuar?
Os erros de Jonas não se resumem à sua impiedade. Jonas toma como certo o favor de Deus, não por sua fé nEle, mas sim por sua fé excessiva em si mesmo. O antiprofeta torna Deus um talismã, outro bezerro de ouro que só existe para confortá-lo e assegurar-lhe estar do lado certo. O Deus do universo torna-se mesquinho e egoísta, feito à imagem e semelhança de seus escultores, e assim se transforma em mais um ídolo a ser manipulado. Enquanto o profeta aposta no favor de Deus para salvar milhares, o antiprofeta aposta no favor divino para salvar a própria pele. Seu próximo? Infiel que, se fosse fervoroso, teria seu ídolo de bolso a garantir-lhe proteção. Não importa se jejuam ou se arrependem, se riem ou choram, se vivem ou morrem; são bezerros prontos para o abate no açougue divino.
Nínive, no entanto, demonstra que bezerros podem sim jejuar, e que merecem sim misericórdia. Resta saber se podem bezerros de ouro, feitos à imagem e semelhança de seu deus Mamon, convocar jejuns para seu povo enquanto se empanturram com o sangue dos irmãos. Resta saber se convocam jejuns arrependidos, ou se buscam no rito outro talismã a garantir-lhes mais poder. Resta saber, por fim, se nossos bezerros dourados praticam o verdadeiro jejum, sem o qual não sobra nada além de hipocrisia:
“Seria este o jejum que eu escolheria, que o homem um dia aflija a sua alma, que incline a sua cabeça como o junco, e estenda debaixo de si saco e cinza? Chamarias tu a isto jejum e dia aprazível ao Senhor?
Porventura não é este o jejum que escolhi, que soltes as ligaduras da impiedade, que desfaças as ataduras do jugo e que deixes livres os oprimidos, e despedaces todo o jugo. Porventura não é também que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres abandonados; e, quando vires o nu, o cubras, e não te escondas da tua carne?” (Isaías 58:5-7)