Meio século de memórias: a primeira partida

Leonício e Luís Aires

Por Leonício Aires

O ano era 1974. Buriti Bravo experimentava viver um período efervescente de sua história. Boa parte da cidade já recebendo água encanada e bem avançadas estavam as obras de piçarramento da MA-034, no trecho que liga com Passagem Franca; para Caxias já concluído. Quanto à iluminação pública, embora ainda distribuída a partir de um gerador, “motor de luz”, serviços de instalação da rede em postes de cimento estavam em andamento. Era o prenúncio da chegada da energia gerada pela Barragem de Boa Esperança. A educação estava em sua fase áurea.

Mas apesar desses avanços, hoje um olhar pelo retrovisor do tempo corrobora com a ideia de ter sido uma aventura o deslocar de um adolescente tutelado apenas pelo motorista e cobrador.

Até então esse personagem não havia ultrapassado os limites da pequena “nesga” sertaneja do leste maranhense, território correspondente à área da cidade somada ao seu lugar de nascença. Dois anos antes, 1972 e 1973, serviram-lhe de estágio para enfrentar o mundo. Trocara a escolinha rural pelo Grupo Escolar Senador Carvalho Guimarães, fato que representou o primeiro impulso para o salto pretendido. Lá cursou o 3º e o 4º ano do Primário. Não teve que demonstrar proficiência no Exame de Admissão ao Ginásio, pois as escolas do Piauí já o tinham abolido.

Um aviso transmitido pela Rádio Pioneira de Teresina, programa “Correspondente do Interior”, foi o determinante para a primeira partida, cheio de dúvidas, medos e saudade. Quatro meses o separavam de um retorno, em férias: “Atenção! Este aviso é para o senhor Salvador Mamona, no lugar Patos dos Mamonas, município de Passagem Franca-MA. Seu filho Luís, avisa para mandar o menino, pois as matrículas já começaram!”.

Seus conhecimentos acumulados, até então, eram os provenientes de notícias de rádio, de leituras de revistas usadas, trazidas de São Paulo pelos primos e, consequentemente, dos ensinamentos da escola. Faltavam-lhe vivências do mundo urbano; iria enfrentar uma metrópole, geralmente acessada na companhia de alguém já com traquejo em cidade grande.

Um dos percursos possíveis, sem que fosse pela rota Caxias era feito de caminhão, em três dias, trafegando pelo Olho D’água do Noga e atravessando o Rio Parnaíba em Parnarama.

Chegado o dia, depois de uma noite maldormida, às 5h da manhã, na Praça Coronel Raimundo Moreira Lima, tomou assento em uma das poltronas do ônibus da Empresa João Martins. O pai fazendo as recomendações necessárias sobre como encontrar o irmão, em Caxias. Dois conhecidos entre os passageiros, foram solicitados a representar a companhia que faltava.

“Dinheiro, é na bolsa! Desça no Pau do Dirceu, no Cangalheiros. Sua passagem eu já paguei! Mas se alguém chegar dizendo que comprou, você pan noutra”.

O irmão, seguindo uma lógica, o esperava no local de baldeação, a agência do Expresso Caxias, condução que os levaria até o destino. O desencontro, porém, foi inevitável. Conhecidos e funcionários da condução se entretiveram em conversas sobre aprender a dirigir, autoescola, habilitação e emprego de motorista. Esqueceram do menino.

Uma das dificuldades foi assimilar tantos termos correlatos, que para ele diziam praticamente a mesma coisa. Parada, agência, ônibus, expresso, passagem, bilhete, cadeira e poltrona. Não sabia manejar o vocabulário próprio de um viajante experiente. Desceu no local recomendado pelo pai!

O sono o perturbava. Na viagem hesitou cochilar, pois ouvira que “dormir era mais caro”! Logo avistou o que supôs ser um “carro de praça”, também chamado de táxi. O irmão desceu, com um repertório de preguntas óbvias a quem se encontrava perdido: “O que tu faz aqui, rapaz? Por que não foi até a agência? Cadê o dinheiro que tu trouxe?” Ousou responder a última pergunta, mesmo esperando repreensão: “O dinheiro tá aqui, dentro da bolsa!”. “Lugar de dinheiro, é no bolso! E se tu perde essa bolsa?” O que se chamava bolsa era, na verdade, uma valise mais apropriada a vendedor de remédios! Na mesma continha roupas, produtos de higiene pessoal e outros apetrechos.

Ocupou o banco de trás e, ante ao barulho ensurdecedor do fusquinha, chegaram em um local muito bonito, com muitos veículos. Bancas de frutas exalando cheiro; o das maçãs, além do ineditismo, se sobressaia sobre os demais. Suspeitou já ter visto aquele local em uma foto (monóculo), só que mostrado de forma enganosa. Disseram-lhe ser de São Paulo. A bela paisagem, enfim, confirmou descrições lhes feitas por um colega que sempre o visitava nas férias escolares: Praça Pantheon. Virou ponto de referência para não se perder, na volta.

Apesar dos percalços, noções geográficas permaneciam consigo: Norte, Sul; Leste, Oeste. Mas o veículo contornou aquele logradouro, passando pelo mesmo local de partida. Foi o suficiente para o mundo rodar. Retomou o tino mais à frente, quando viu o asfalto. Cientificou-se da sistemática do tráfego, coerente com o que pai relatava: “Lá é o seguinte: direita, de quem vai; esquerda, de quem vem!” Traduza-se em mão e contramão!

Em pouco tempo, do alto da Torre vislumbrou a tão propalada Teresina. Sentiu o frio na barriga característico a qualquer mortal que vivenciava a experiência. Posteriormente, ouviu de outro principiante, de Olho D’água das Cunhãs, ter sentido as mesmas sensações: “Oh meu Deus, no meio de tanta luz vou morrer e não acho meu irmão!”

Finalmente, após cruzar a fronteira pela Ponte Engenheiro Antônio Noronha (Ponte Nova), sobre o Velho Monge, o desembarque na Praça Saraiva que, à época, fazia as vezes de um terminal rodoviário em pleno centro da cidade verde.

O desafio a partir disso era se virar sozinho em meio àquele emaranhado de ruas, sinais de trânsito, cruzamentos e um mar de desconhecidos.

A primeira lição aprendida foi fixar dois endereços distantes entre si, separados por três quilômetros. Teria que fazer o percurso a pé: hotel da Dona Alzirina, na Rua Firmino Pires, enxergando a Avenida José dos Santos e Silva, Zona Sul; Casa do Estudante, na Rua Rui Barbosa, Centro/Norte. A segunda, como não poderia deixar de ser, foi transeuntar pelas calçadas dos Armazéns Confiança, loja do Paraíba, Dragão dos Tecidos, Banco do Nordeste e Supermercado São Gonçalo. Nada lhe custava, nessas idas e vindas, dar uma expiada na tentativa de flagrar algum hóspede importante do Hotel Piauí, quase sempre “artistas globais” ou craques do futebol.

A edificação mais alta existente era a do Instituto Nacional de Previdência Social – INPS, em torno do qual se disseminavam um mito. Narrativas davam conta que o prédio balançava.

Na primeira ida à escola se fez acompanhar pelo irmão; na segunda, pelos colegas. Colegas, aliás, palavra que define o caminhar juntos para o colégio; Colégio João Clímaco D’almeida, Rua 13 de maio, cruzamento com a Avenida Campos Sales, Teresina, capital do Piauí.

Leonício Aires da Silva, professor da Rede Pública de Ensino do Maranhão e membro da Academia Passagense de Letras.