Matheus Pichonelli (UOL)
Dois idosos chegaram em pânico, no meio da noite, à penitenciária de Caxias, município de 118 mil habitantes no interior do Maranhão. “Vocês vão bater na gente?”, eles perguntaram aos auxiliares durante a revista.
Horas antes, a dupla havia aceitado a oferta de alguns homens para sacarem dinheiro no banco em troca de R$ 300. O que eles não sabiam era que os cartões eram clonados. Foram presos pela polícia.
Ao ver a cena, a agente penitenciária Rosanne Medeiros, de 29 anos, foi conversar com os detidos. Pediu que eles tivessem calma e prometeu que ninguém ia bater neles. Providenciou a “quentinha” e os acompanhou até a cela, onde costumam ficar os presos mais velhos.
No caminho, um deles pedia ajuda para comunicar a companheira, uma senhora com quem ele morava no interior e que não estava sabendo de nada.
Rosanne ligou para um defensor e pediu para priorizar uma audiência de custódia. Eles saíram da prisão dois dias depois.
“Meu coração ficou doído”, conta a agente sobre mais um dia comum em sua vida na unidade prisional com cerca de 270 detentos. Ela é uma das quatro agentes femininas efetivas que trabalham no local.
Entre fotos de viagem e treinamento
Quem acompanha suas postagens no Instagram, com fotos na praia, viagens, trilhas e cafés, nem imagina como é sua rotina durante um plantão de 24 horas no local.
Secretária de procedimento disciplinar, ela é responsável por dar apoio a visitas, fazer escoltas para o fórum ou para o médico, e até ir ao banco com eles, quando necessário.
Rosanne começou a trabalhar no sistema penitenciário do Maranhão, em janeiro de 2017, no antigo Centro de Detenção Provisória (CDP) da capital, São Luís. Até pouco tempo, o local era conhecido como presídio de Pedrinhas –onde, em 2013, uma série de rebeliões deixou 64 mortos, muitos com a cabeça degolada.
“As pessoas têm ideia de que Pedrinhas é somente uma cadeia, mas na verdade é um complexo penitenciário, com seis unidades prisionais, mais a feminina. O nome agora é outro. Acho que é uma tentativa de tirar o estigma das cabeças rolando e do terror.”
Apesar do estigma, ela conta que a rotina nos presídios do estado hoje é diferente e passa longe da imagem produzida pelo senso comum. “Acho engraçado o choque das pessoas quando digo que trabalho em um presídio.”
Na unidade feminina, por exemplo, ela fez amizades, visitava os filhos das internas e se deliciava com os salgados produzidos na padaria da unidade e com os doces das oficinas de chocolate na Páscoa. “Quando eu saía para escolta, elas guardavam os pães e doces para mim.”
O filho de uma das detentas, com quase dois anos, era o xodó da unidade. Rosanne conta a história enquanto envia, pelo WhatsApp, a foto do dia em que o menino, doente, precisou ir ao pronto-socorro e ficou no seu colo, vidrado em um desenho no celular, enquanto tomava soro. “Sempre ia lá ver os bebês e brincar um pouco. E perguntava por que elas estavam lá. Muitas eram por tráfico, por causa de companheiros.”
A solidão das mulheres encarceradas
A agente conta que as mulheres no local são geralmente abandonadas pelos companheiros. “Essas visitas são bem escassas. Quando tem, são filhos, pais, irmãos.”
Já no presídio masculino, a lealdade feminina é observada pela fila nos dias de visita. Rosanne conta ser comum ver, nessas ocasiões, mães saírem chorando e companheiras conhecendo o local pela primeira vez, muitas com tremores. “Uma vez estava dando apoio e uma visitante inexperiente ficou tão nervosa que menstruou. Eu dei um absorvente pra ela.”
Hoje ela trabalha em sua cidade-natal, Caxias, onde faz plantão das 7h às 7h e dorme em um alojamento feminino. A cidade é mais perto da capital do Piauí, Teresina (a 81 km dali), onde ela estudou, do que de São Luís.
Lá, ela cuida dos procedimentos disciplinares, dá apoio à direção e recebe pedidos recorrentes dos detentos para analisar os seus processos. Um deles estava à beira da morte quando recebeu alta de um hospital e voltou para a cela. Rosanne precisou brigar para que ele voltasse à unidade médica.
O presídio de Caxias conta com uma horta, com plantações de alface, rúcula, quiabo, couve, tomate-cereja, feijão. As hortaliças são todas doadas. “Eu levo para casa toda vez que saio de plantão. Bom que é sem agrotóxicos”, conta.
“Mas você não tem medo?”
Formada em direito, ela conta que sempre quis ser policial. Foi pelo Instagram que soube, em 2016, de um edital aberto para trabalhar no presídio. Na época, a agente aguardava uma prova para delegada, mas a demora provocava desespero. Ela não queria depender financeiramente do pai.
Tinha preconceito com o trabalho, que aos poucos foi se dissipando.
“As pessoas pensam que é igual à série ‘Carcereiros’. Não é!”
Isso exigiu um exercício sobretudo de escuta. Há uma linguagem própria entre os detentos. “Catatau”, por exemplo, é bilhete. “Tereza” é uma corda feita de lençol. “Nervosinho” é a mistura de remédios controlados em um suco. “Tirar meia hora” é brincar. “Laranjada” é emboscada. “Melhorado” é a comida trazida por familiares. E “parada errada” é linguiça.
“A gente vai pegando naturalmente. Como eu colho depoimentos, já vou aprendendo. Quando trocou a especialista de penitenciária jurídica, fui ensinando para ela o que queria dizer cada coisa. Tipo quando apurava alguma briga e alguém dizia ‘só tirei meia hora’, querendo dizer: ‘só estávamos brincando’”, conta, rindo.
O trabalho no presídio é até hoje motivo de preocupação para os pais. “Mas não tenho medo. Os que ficam do lado de fora, nos trabalhos de limpeza, me tratam muito bem. Nunca mexeram comigo, nunca me desrespeitaram. Nunca precisei gritar ou jogar gás. Alguns ainda me chamam de doutora.”
Ainda assim, diz, ela precisa andar com uma arma, que é cautelada pelo estado e pode ser levada para casa. (Nova foto, dessa vez em um treinamento de tiro, onde era a única mulher do local).
“Em um presídio ninguém fica totalmente seguro. A gente sabe que tem muitos criminosos mesmo, enquanto muitos foram condenados com base em depoimentos vagos, sem corpo de delito. Desde 2014 (ano da rebelião), foi implantado um procedimento com ordem, disciplina, regras de segurança, padrões de movimentação interna. Eles só podem sair algemados, com as mãos na cabeça. As unidades têm psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional, enfermeiros e técnicos em enfermagem. E um especialista penitenciário jurídico. As pessoas pensam que é igual à série ‘Carcereiros’ [da TV Globo]. Não é!”
Antes de encerrar a conversa, a agente envia, sempre pelo WhatsApp, uma foto do curso que acaba de fazer com cães de detecção.
De óculos e olhar concentrado, ela era uma das três únicas mulheres em uma sala com 18 homens, entre eles o instrutor que trazia, na coleira, um quieto e obediente pastor alemão.