A formação virtuosa da infância, a sorte do desenvolvimento, o futuro da sociedade e da civilização há muito deixaram de interessar à elite brasileira.
A mídia derrotada em 26 de outubro fez da posse da Presidenta Dilma Rousseff um manifesto fotográfico de revanchismo e ressentimento.
Seria só a doença infantil do conservadorismo não fosse o sinal eloquente dos dias que virão.
Acovardada diante da solenidade democrática, momentaneamente impedida de expor as garras em textos explícitos, a cobertura conservadora dedicou-se a selecionar e recortar imagens oferecendo uma angulação desairosa da cerimônia, da presidenta reeleita e, por indução, do seu legado e do seu futuro.
Nisso a Folha comprovou, mais uma vez, o virtuosismo no ramo.
A exemplo do que fez com a ficha falsa da Dilma, o diário da família que manteve relações simbióticas com o aparato da ditadura, estampou na primeira página um recorte da posse em que a chefe da nação parece em litígio com a faixa presidencial.
‘Ilegítima’ -- não foi esse o mote lançado semanas antes por FHC?
O conjunto lembra as goelas pantagruélicas urrando sua evocação a Dilma e ao Brasil, no jogo inaugural da Copa do Mundo, no Itaquerão.
Não nos enganemos.
Estamos diante de manifestações mórbidas de interesses descomunais em baldeação para um confronto aberto pelo controle do passo seguinte do desenvolvimento brasileiro.
A nomeação de um centurião do mercado para comandar a Fazenda, como previsto, não cessou a dança a guerra.
A emissão que nunca desafina em palavras ou imagens não cessa de martelar o preço da pax com os mercados.
Rendição incondicional na forma de uma carta branca a Joaquim Levy, exigem colunistas sexagenárias a serviço das boas causas do ramo.
O que se pretende é acoplar o país à grande cloaca mundial de um capitalismo sem peias; legitimar o descolamento radical entre a riqueza privada e o interesse coletivo e, de uma vez por todas, engatar a sétima economia do planeta à marcha batida da restauração neoliberal.
O passaporte para o ‘novo normal’ sistêmico requer a desqualificação de tudo aquilo que Dilma simboliza. De preferência, dito pela boca da própria, que descartou a eutanásia no discurso de posse.
Não apenas isso: contrapôs à rendição incondicional um intrigante programa cívico de ‘pátria educadora’.
Mau sinal, diz a pátria rentista, cujo projeto dispensa causas cívicas e republicanas.
Ao contrário.
O desmanche do Estado é o biodigestor do seu programa.
A decomposição de direitos sociais, o adubo no qual florescerá, ainda mais viçosa, a alta finança desregulada.
Embora bem posicionados, os endinheirados brasileiros querem mais.
A elite da sétima economia do mundo é responsável pela quarta maior fortuna do planeta evadida em paraísos fiscais.
Estudos da The Price of Offshore Revisited, coordenados pelo insuspeito ex-economista-chefe da McKinsey, James Henry, revelam que os brasileiros muito ricos – que se envergonham do governo corrupto-- possuíam, em 2010, cerca de US$ 520 bilhões abrigados em santuários do dinheiro frio.
Ofende a esse fluxo patriótico a tentativa de se construir por aqui um Estado social, que eventualmente considere a riqueza privada tributável em benefício do bem comum.
A questão agora é saber em que medida o discernimento social, condicionado por uma esférica máquina de difusão dos interesses vips, conseguirá desvencilhar o futuro da sociedade desse destino histórico pretendido pelas suas elites.
É nesse ambiente de armas desensarilhadas que incide a radicalidade implícita ao lema do segundo mandato: ‘Brasil, pátria educadora’.
A formação virtuosa da infância, o compromisso com a civilização, a sorte do desenvolvimento e do investimento, enfim, o presente e o futuro da sociedade há muito deixaram de interessar à elite brasileira.
Esse descompromisso dramático explica e colide com a abrangência daquilo que Dilma se impôs como trilho do seu segundo mandato.
‘Estamos dizendo que a educação será a prioridade das prioridades, mas também que devemos buscar, em todas as ações do governo, um sentido formador, uma prática cidadã, um compromisso de ética e sentimento republicano”, enfatizou a presidenta.
Nessa pátria educadora, que ocupa o vazio de uma elite que renunciou à nação, não cabem retrocessos.
Ajustes -previstos- terão que obedecer a compromissos sintetizados de forma solene pela reeleita no primeiro dia do seu segundo mandato:
‘Nenhum direito a menos, nenhum passo atrás’.
E isso inclui o padrão de reajuste do salário mínimo, reiterou a chefe da nação, no terceiro dia do seu segundo governo.
Moral da história: uma ‘pátria educadora’ não pode florescer com o sequestro de direitos e do poder de compra da família assalariada.
É o oposto do que pensam os endinheirados sobre o papel da escola na sociedade.
No Brasil, como em boa parte do mundo, as elites definem a educação como o único canal legítimo de mobilidade social das massas.
Só através da escola, não da reforma agrária, a tributária ou a urbana; tampouco através do salário mínimo ‘inflacionário’, ou da reforma política, menos ainda através da pluralidade informativa, é que a miséria material e espiritual perderá seu reinado neste lugar.
Ao dar à escola a amplitude da pátria, a Presidenta da República estende o sentido da formação e da informação da gente brasileira para muito além dos limites tolerados pelo funil da meritocracia escolar.
A importância de se fortalecer o aparato escolar convencional não é minimizada por isso.
Ao contrário.
Não fosse por outros motivos, o ciclo de governos do PT será lembrado como aquele que implantou a regulação soberana sobre a riqueza do pré-sal --sob fogo cerrado dos interesses de sempre-- assegurando assim a transferência de múltiplos de bilhões de reais à política educacional nos próximos anos.
Trata-se de um reconhecimento de que a escola pode muito.
Mas não um endosso ao mito liberal de que ela pode tudo.
Em 2012, os analistas do PISA –programa internacional de avaliação de sistemas educacionais em 67 países-- afirmaram que a metade do avanço brasileiro em matemática, por exemplo, foi uma decorrência de mudanças no entorno social dos alunos.
Uma parte do noticiário conservador interpretou o dado como um atestado de fracasso da ‘educação petista’. Outra, omitiu-o.
Compreende-se.
Investigá-lo talvez levasse à conclusão de que as políticas demonizadas pelo dispositivo conservador – como o Bolsa Família, a valorização do salário mínimo, crédito barato, subsídio à habitação popular etc-- dilataram as fronteiras de aprendizado da criança brasileira.
Exemplo 01: estudantes do ensino médio beneficiados pelo Bolsa Família nas regiões Norte e Nordeste têm rendimento melhor do que a média nacional (82,3% e 82,7%, contra taxa brasileira de 75,2%).
Exemplo 02: pesquisa feita na Universidade de Sussex, na Inglaterra, em 2012, revela que quanto maior é o tempo de participação dos lares no Bolsa Família, maior é o aproveitamento escolar das crianças. Segundo a pesquisa, a taxa de aprovação dos alunos do 5º ano aumenta 0,6 ponto percentual para cada R$ 1 de aumento no valor médio do benefício per capita recebido pelas famílias.
Pátria educadora é isso.
E a sua influência na escolarização não é privilégio de sociedade pobre.
Tome-se o caso dos EUA.
Entre 2009 e 2012, país retrocedeu cerca de 20 pontos na classificação global do Pisa.
Em 2009 ocupava a 17ª posição; caiu para a 36ª em 2012 ; ficou abaixo da média geral em ciências e matemática.
O que mudou nos EUA entre 2009 e 2012?
A sociedade norte-americana mergulhou na sua maior crise desde a Depressão de 1929.
Uma em cada cinco crianças norte-americanas passou a viver em ambiente de pobreza. A renda anual média das famílias com filhos recuou cerca de US$ 6.300 (tomando-se 2001 como base de comparação).
Um milhão de estudantes de escolas públicas viram suas famílias serem despejadas nos EUA.
O grau de recuperação do mercado de trabalho na presente crise é o mais lento de todas as recessões anteriores vividas pelo capitalismo norte-americano.
Isso não é uma pátria educadora.
A sobrevalorização do papel da escola na agenda conservadora padece ainda de outros flancos de coerência.
O Brasil investe três vezes menos que a média da OCDE para educar uma criança dos 6 aos 15 anos (R$ 64 mil e R$ 200 mil, respectivamente).
Mas o jogral que atribui à educação poderes sobrenaturais suspira por um Brasil com salários chineses ; produtividade alemã; escolarização nórdica; superávit ‘cheio’ e carga fiscal equiparável a de Burkina Faso, onde o índice de alfabetização estacionou nos 25%.
Esse Éden conservador não guarda qualquer relação de parentesco com a ‘pátria educadora‘ de Dilma.
Sugere, antes, um deslocamento espacial e temporal do conflito distributivo, confinando-o em uma escola e em um aluno, aos quais caberá a exclusiva responsabilidade de erguer a sociedade pelos próprios cabelos.
Essa escola barão de Munchausen não se confunde com a concepção da presidenta Dilma, que só pode ser entendida como um projeto de (re) construção social e cultural, que alfabetiza com lápis, papel, direitos, participação democrática, pactuação de desenvolvimento e consciência crítica.
O resto é adestramento, não educação.
Nesse sentido, vale reler um texto já publicado neste espaço, mas sempre oportuno quando se discute o tema. Trata-se de inspirador fragmento da entrevista concedida por um professor, crítico literário e militante socialista à campanha de Lula, em 2002, sobre o assunto.
Hoje mais que nunca, suas palavras faíscam a pertinência e, sobretudo, os desafios da grande transformação histórica embutida no lema do quarto mandato progressista que começa agora no país.
Com a palavra, o professor Antonio Candido:
"Temos uma crise de civilização (...) Talvez seja um mal que deriva de um bem.
O esforço para tornar os níveis de ensino acessíveis a todos força diminuir o nível. Então, você fica num dilema perverso: elitizo ou democratizo e abdico de qualidade? A saída está numa sociedade igualitária, onde todos tenham acesso à cultura e à educação de qualidade. Foi o que eu vi em Cuba. Instrução pública e gratuita em todos os níveis. E de muito boa qualidade.
A chave é a transformação da sociedade, na qual as pessoas se apresentam para a educação em pé de igualdade.
Quem acha que um bom sistema educacional salva a pátria está redondamente enganado.
A participação nesse sistema será sempre restrita.
Por isso você tem que, primeiro, fazer mudanças estruturais; depois, terá um boa educação. Os liberais pensam: eu tendo uma população instruída, terei uma sociedade melhor.
Errado. Tendo a sociedade melhor, terei uma população instruída. Só assim você supera essa contradição aparente entre elitização e democratização. Continuo achando que a forma republicana do ensino público e gratuito é o grande modelo
(...) Numa sociedade em que as diferenças de classes ficam muito reduzidas, haverá um desaparecimento da cultura erudita e da popular. E surgirá uma nova cultura. Isso é possível.
A função do Estado é fazer um grande esforço econômico e social para que no plano cultural o hiato diminua. De tal maneira que, no fim de certo tempo, o popular se torna erudito e o erudito se torna popular’ (Antonio Candido; site da Campanha Lula Presidente; 2002)