O "doutor" e o "rei": jogando por música |
O documentário O Homem que Engarrafava Nuvens mostra como os nordestinos são capazes de resistir com bravura a coisas muito piores do que ofensas pós-eleitorais
Eis que, passeando a esmo pelos canais mais recônditos da tevê, até a mais cética das criaturas pode ser convidada a acreditar na força providencial das coincidências. O acaso revelador aconteceu nesta noite de segunda-feira no improvável Curta! (canal 56, na NET) quando este desavisado escrevinhador surpreendeu a si mesmo estacionando diante de um documentário brasileiro enigmaticamente intitulado O Homem que Engarrafava Nuvens.
O dito engarrafador de nuvens é Humberto Teixeira, “o doutor do baião”, na homenagem de seu parceiro Luiz Gonzaga – Humberto, o inspirado letrista que, em Asa Branca, escreveu o mais belo verso da MPB, aquele que fala: Quando o verde dos teus olhos/Se espalhar na plantação/Eu te asseguro não chore não, viu?/Que eu voltarei, viu?/Meu coração.
A direção de Lírio Ferreira, aquele de Baile Perfumado, de 1997 (o encontro do mascate Benjamin Abrahão com o dândi Lampião), e a fotografia de Walter Carvalho já teriam credenciado suficientemente o filme, que é de 2009, cuja narrativa segue o fio da dolorosa romaria da filha de Humberto na paisagem geográfica e humana que esclarece seu múltiplo talento e sua controvertida personalidade. A filha é a atriz Denise Dumont.
Assistir à celebração do ritmo – o baião – que irriga nossas raízes musicais por figuras que vão de David Byrne a Silvana Mangano (cantora de cabaré em Anna, de Alberto Lattuada) serviu de terno contraponto pós-eleitoral aos desatinados de ódio, aos golpistas de papel, ao preconceito obstinado contra esses nordestinos capazes no entanto de resistir, com bravura e com poesia, a coisas muito piores do que a cara feia das loiras platinadas do Leblon e dos Jardins.