A onda de preconceito de classe e racismo geográfico mostra uma grande dificuldade em admitir outras razões para o voto. Mas classes sociais votam por razões distintas
por Wilson Gomes/CartaCapital
Santinhos espalhados pelo chão de uma zona eleitoral no Núcleo Bandeirante, em Brasília |
Tem sido assim desde, pelo menos, 2006. Basta o PT vencer uma eleição presidencial para a nossa fábrica social de diagnósticos e explicações começar a funcionar com força total. Jornalistas, comentaristas de política, pessoas nos bares da vida e nos botecos das redes sociais digitais, e até FHC, contrariados ou intrigados com o que as urnas disseram, todos passam compulsivamente a “explicar” como pode ter sido possível tamanho contrassenso, tal violação da lógica e das evidências, erro de tal proporção e tantas consequências. O raciocínio de base é sempre o mesmo: a) a maioria dos eleitores fez escolhas diferentes da minha; b) escolhas divergentes da minha são erradas; c) quem foi esse insensato, irresponsável, desqualificado, inocente útil, desvalido a cometer tamanho desvario?
Neste ano, notei a inauguração de outro veio argumentativo, desta vez a respeito do resiliente voto tucano em São Paulo, que provavelmente deve intrigar o Brasil inteiro. A lista dos deméritos do governador é enorme: provocou a fúria das massas nas, agora elevadas à glória dos altares, “manifestações de junho”; “a polícia de Alckmin” barbarizou jornalistas e manifestantes naquela e em outras ocasiões; o seu governo conseguiu fazer com que os paulistanos temessem a falta de água como sertanejos do semiárido.
Como é que depois de tudo isso ele é reeleito de forma consagradora? Estarão os paulistas hipnotizados? São antipetistas tão fanáticos que votariam até em Lúcifer - desde que ele tucanasse -, não importa as consequências?
A base do argumento é a mesma: eu sei que X não merece ser eleito, por N razões; mas X é eleito; logo, algum erro moral ou intelectual há nessa decisão de eleger X.
O site UOL abriu a usina de explicações ontem com “Dilma vence nos sete Estados com menor renda média”. As garotas e garotos do canal GloboNews, com o luxuoso auxílio dos meninos descolados do Manhattan Connection, deixavam entender, sem disfarce, que “o Nordeste” é a única força capaz de impedir que Aécio cumpra a sua sentença, ser presidente do Brasil, que SP estava fazendo, com entusiasmo, a sua parte para recolar o cosmo no seu lugar, mas tinha uma Bahia de votos no meio do caminho.
No Twitter, no Facebook e no WhatsApp as explicações eram as mesmas desde 2006, com poucas variações. As alternativas são as de sempre: a) Dilma vence onde o IDH é menor; b) Dilma só vence acima do trópico de Capricórnio (sim, Sílvio Romero, não há civilização que preste entre os Trópicos); c) Dilma só ganha por causa do Nordeste; d) Dilma só vence por causa dos ferrados, vendidos à dinheirama que o Bolsa Família - esta fábrica de preguiçosos e acomodados, esta usina de dependência que, em vez de eliminar a pobreza faz com que ela se perpetue para que o PT nunca mais perca eleições - distribui; e) Dilma vence apenas em estados com baixo consumo de proteína e com menor estatura média da população.
Um amigo muito querido no WhatsApp disparou, em dasalento, que deixará "esta merda de país" assim que for possível, que não aguenta mais ver os analfabetos e desdentados decidindo as eleições presidenciais.
Vou chamar o raciocínio à base de tudo de silogismo Oliveira Vianna. Premissa maior: Só ferrados, famintos e ignorantes votam em Dilma. Premissa menor: Ferrados, famintos e ignorantes são inferiores a nós. Conclusão: Dilma é eleita apenas com o voto dos inferiores. Depois de exercício tão consistente de lógica, estamos autorizados a vociferar a nossa fúria mediante o racismo geográfico (então nordestino, baiano, paraíba etc. voltam a ser palavrões), o preconceito de classe (miseráveis e ignorantes dependentes do Bolsa Família) e na atribuição de inferioridades e vulnerabilidades aos outros (a mídia paralisa o cérebro dos pobres, todo mundo sabe disso, abrindo a brecha para João Santana entrar e inocular o veneno petista diretamente no hipocampo). Nessas três coisas, nós, os brasileiros, somos muito bons.
O problema com esse raciocínio é que ele tem grande dificuldade de admitir outras razões para o voto, diferente das que eu adoto para a minha própria decisão. As minhas são razões, as dos outros, não. Quanto mais longe de mim é o outro (a outra classe social, a outra região do país), cognitivamente, politicamente ou moralmente, menos ele tem razões: ele age por instintos, interesses, necessidades. Nunca racionalmente. Racionais como “nós”.
Peguemos os pobres, onde se resume toda a questão. Se os pobres votam no PT, o fazem porque são vulneráveis, ignorantes, não têm discernimento? Para os petistas tatuados os pobres são vulneráveis à mídia e ao capitalismo, que os leva pelo nariz como são levados os boi de arrasto. Para a classe média antipetista, os pobres são vulneráveis ao marketing político e às esmolas que o PT distribui no lugar remoto onde eles vivem, chamado, alternativamente de “as favelas”, “os grotões” ou “o Nordeste”.
Basta admitir que os pobres têm, sim, boas razões para o seu voto e todo esse edifício de argumentos montados para a conveniência da classe média cai por terra. A teoria poderia, naturalmente, ser diferente. É bastante admitir que diferentes classes sociais votam por diferentes razões. Todas legítimas.
Vem cá, é razoável esperar que os 31,7% dos brasileiros que vivem com R$ 150 de renda per capita por mês votem por razões diferentes de nós, da classe média, ou não? Não é que os pobres votem em Dilma porque não usam a razão. Os pobres votam em Dilma porque têm lá as suas muito justificadas razões. Os pobres são tão inteligentes que sabem que as razões de voto da classe média não podem ser as suas razões de voto. São pobres, não são burros. Burro é o cara de classe média que acha que tanto o rico quanto o pobre devem votar pelas suas mesmas razões. Burro e autocentrado.
O PSDB decidiu que as pessoas devem votar em Aécio por causa da corrupção do PT e do baixo crescimento econômico. Para mim, é um bom argumento. Aécio vai insistir nos "pecados capitais" de Dilma: crescimento anêmico da economia, inflação e incapacidade de conter corrupção. Para mim, são bons argumentos. Ainda mais que não sou petista e a minha simpatia pelo partido está em acentuado declínio. Mas, se eu ganhasse R$ 150 por mês para cada pessoa que sustento na minha família, esse argumento não me diria NADA. São, pois, ótimos argumentos para a classe média, crescentemente antipetista. E para os outros? O PSDB vai dizer o quê? "Vamos conversar?". Rá.
Na situação atual, acho que os pobres é quem têm mais motivos de queixa do que nós da classe média, afinal é só nas eleições que eles contam mais que nós. Nos intervalos, mandamos nós. Em suma, nós é que atrapalhamos o voto deles, não eles o nosso. A GloboNews acha que o Nordeste é o que atrapalha a vitória de Aécio. Ué, não é SP quem atrapalha a vitória de Dilma?
O que os eleitores dos tucanos no Sul, Sudeste, Nordeste etc. precisam entender é que se os pobres contam eleitoralmente, precisam contar também como cidadãos. Como a democracia nos obriga a reconhecer nos pobres ao menos os mesmos direitos eleitorais que temos, o PSDB tem um nó a desatar. Enquanto os tucanos acharem que as razões de voto dos distritos financeiros e industriais de SP, Rio, Minas etc. têm que ser as mesmas dos 50 milhões de brasileiros pobres, terá um problema.
Do jeito que a coisa anda, ou os tucanos acabam com a pobreza, ou a pobreza acaba com os tucanos. Ou, de tanto bater na tecla, quem sabe, convençam os pobres de que o PT inventou a corrupção e que se deita toda noite com ela. Continuem tentando, quem sabe?
Pobre não é raça, não é casta, não é natural. Pobre é circunstancial. Ponha todo mundo na classe média e aí prioridades e urgências eleitorais da classe média poderão ser generalizadas. Não quer que as razões eleitorais de gente dependente de bolsa esmola, com baixa escolarização e mal nutrida atrapalhem e perturbem a sua cristalina decisão de voto, puxando o resultado para o lado que eles pendem? A solução é simples: acabe com a pobreza e universalize a educação. Enquanto isso, aceite que eles terão diferentes razões para as suas escolhas eleitorais ou desista da democracia. Ou continuemos a nos divertir com o preconceito social e o racismo geográfico que as más explicações e os falsos diagnósticos nos autorizam. São escolhas.
* Wilson Gomes é professor e pesquisador da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia.