O fim da era Sarney no Maranhão

O clá Sarney governou quase de forma ininterrupta o Maranhão nas últimas cinco décadas

Isto É

Dois anos depois do golpe militar que derrubou o presidente João Goulart, o cineasta baiano Glauber Rocha produziu um documentário sobre a posse de um certo José Sarney, no governo do Estado do Maranhão.

Já então cultivando seu inseparável bigode, Sarney, à época com 35 anos, fora eleito pela Arena, o partido de sustentação aos governos dos generais. A amizade com o diretor de Terra em Transe, vinha, entre outras coisas, da fama de político moderno e com preocupação social de Sarney, que integrava a “bossa nova”, ala considerada progressista da UDN, no período pré-1964, e uma das forças que passaram a dar sustentação ao regime que depôs Jango.

No filme, em tendo como pano de fundo cenas de casas miseráveis, hospitais infectos e de pessoas doentes, com tuberculose, ou famintas, Sarney se comprometia a acabar com todas as mazelas do Estado, levando-o a ingressar num período de prosperidade e superação da miséria.

Passado quase meio século, com pequenas mudanças cosméticas, o cenário filmado por Glauber, ainda é praticamente o mesmo. Governado quase que de forma ininterrupta por Sarney e seu clã nesse período, com um breve interregno de dois anos de governo do opositor Jackson Lago, entre 2007 e 2009, o Maranhão continua como um símbolo acabado do atraso nacional, disputando com Alagoas o triste privilégio de exibir os piores indicadores sócio-econômicos do País.

Dos 15 municípios com menor renda, 10 estão fincados em solo maranhense. Das 100 cidades com mais baixo Indice de Desenvolvimento Humano (IDH), 20 são da terra dos Sarney – entre as 100 com os melhores indicadores, nenhuma é do Estado.

Não por acaso, o Maranhão fica em penúltimo lugar na avaliação feita pelo Atlas de Desenvolvimento Humano, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Programa das Nações Unidas pelo Desenvolvimento (PNUD), com um índice de 0,639 (quanto mais perto de um, melhor), suplantado apenas por Alagoas, com 0,631. Mais: 26% dos 6,8 milhões de habitantes estão abaixo da linha da pobreza, com renda per capita de R$ 70 por mês.

É essa herança maldita que o advogado, ex-juiz de Direito e ex-deputado federal Flávio Dino terá de administrar a partir de primeiro de janeiro do ano que vem. Eleito com 64% dos votos válidos por uma coligação encabeçada pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B), Dino, que ocupou a presidência da Embratur no governo da presidenta Dilma Rousseff, vai suceder a governadora Roseana Sarney, filha dileta e principal herdeira do pai, na política local.

Sua tarefa não será fácil. Ao contrário. Extirpar o sarneysismo e tudo o que ele representa, com seus milhares de apaniguados, sustentados graças à malversação de recursos públicos e pelo nepotismo que viça nas tetas do Estado, é uma tarefa para vários mandatos. Sarney, que desistiu de concorrer ao Senado pelo Amapá, por causa de sua idade, e seu círculo próximo são onipresentes no Maranhão: seu sobrenome batiza hospitais, ruas, rodovias, prédios e bairros na capital e no interior. Mais de 160 escolas públicas, estaduais e municipais lembram algum Sarney, a despeito de a lei vetar esse tipo de homenagem a pessoas ainda vivas.

Não faltam no quadro de horror em que se transformou o Maranhão eternizado pela câmera de Glauber, escândalos como os que envolviam um contrato para compra de comidas e bebidas finas, no valor de R$ 1 milhão, caso não tivesse sido denunciado pela imprensa.

Ironias da história: durante décadas, o PC do B, de Dino, preconizou a guerra popular prolongada como a única alternativa para promover avanços na sociedade brasileira e modernizar suas estruturas arcaicas. Dissidência inspirada inicialmente na experiência vitoriosa dos comunistas chineses de Mao Tse Tung, a sigla chegou a até patrocinar a experiência mal-sucedida da Guerrilha do Araguaia, dizimada pelo Exército, esmagada pela ditadura militar, na primeira metade dos anos 1970, no Norte do País.

Com a redemocratização, o PC doB reinventou-se e soube adaptar-se às regras do jogo democrático, participando do movimento pelas Diretas Já e das mobilizações que levaram à eleição indireta do ex-governador de Minas Gerais Tancredo Neves e de seu companheiro de chapa. Ele mesmo, José Ribamar Sarney, servidor de todos os governos militares, presidente da Arena, que chegou a ser chamada de o maior partido do Ocidente, por um antecessor do atual senador pelo PMDB do Amapá.

A legitimidade que lhe dá o voto popular, livre e democrático, será a melhor arma de Dino, que disputa o governo do Maranhão pela segunda vez, para tornar realidade ao menos uma boa parte daquilo que Sarney prometeu, em frente às lentes de Glauber Rocha, trazendo seu Estado para o século 21. De quebra, remetendo à lata de lixo da História o imortal Sarney, hoje com 84 anos de idade, seu bigode enegrecido artificialmente, e o sarneyzismo.