A igreja branca tem que acabar

Ronilso Pacheco, colunista convidado da semana, é pastor e mestrando em Teologia na Universidade de Columbia, em Nova Iorque (Foto: Divulgação / Paulo Barros)

Dodô Azevedo(Folha de São Paulo)

Lemos e ouvimos por aí um discurso arrogante, oportunista e preconceituoso que diz: “A esquerda precisa conversar com os evangélicos, chegar às periferias”. Oportunista porque se vale da ingenuidade dos que não conhecem a natureza diversa da periferia e o universo evangélico e creem em qualquer um que escreva:: “Eu vim da periferia, vocês não sabem o que se passa lá. Eu sei, e vou contar para vocês.” Arrogante, porque se coloca como voz única do que é necessariamente polifônico. Preconceituoso porque parte do princípio que pobres e evangélicos têm a cabeça vazia, são espécie de teletubies que aderem ao primeiro discurso que a eles chegar, a quem se apresentar mais próximo.

Uma das belezas do projeto Quadro-negro, é a oportunidade convidar as muitas vozes que, juntas, apresentam uma visão mais honesta do que tem se tornado um produto feitichizado para ser consumido por brancos “entusiastas das periferias e dos pobres”. Ronilso Pacheco é teólogo e pastor de São Gonçalo e ativista colaborador de diversas organizações de direitos humanos no Brasil. Atualmente mestrando em Teologia pelo Union Theological Seminary, da Universidade de Columbia (EUA), o organizador do livro “Jesus e os Direitos Humanos: porque o reino de Deus é justiça, paz e alegria”, publicado pelo Instituto Vladimir Herzog, em 2018, escreveu recentemente, em uma de suas redes sociais:

“A impressão é que, nas periferias, nos territórios empobrecidos, evangélicas e evangélicos formam um grupo inculto e obtuso, limitado politicamente, incapaz de pensar por si mesmo e criar suas próprias linhas de fuga e sobrevivência.”

E aqui ele escreve sua primeira colaboração para o Quadro-negro, publicado um dia após a censura ao trabalho do Porta dos Fundos, explicando que, para além disso, o que ele chama de “cristianismo branco” em nada se parece com a igreja original, que surgiu após a passagem de Jesus Cristo pela terra.

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O Fim da Igreja branca é o fim de uma Igreja que não tolera a diversidade e a solidariedade – Por Rosilso Pacheco

Eu já escrevi que a bíblia é um livro negro de hermenêutica branca. Com “negro”, me refiro a toda diversidade que há na bíblia (de povos, culturas, tradições, religiosidade), e que foram violentamente deturpadas e invisibilizadas para prevalecer a forma europeia-colonial de lê-la e se projetar nela. A negação e a repressão desta diversidade nos afetou profundamente. E esta é uma das razões pelas quais a igreja branca precisa acabar. Ou ela vai nos destruir enquanto sociedade.

Mesmo não achando necessário, faço questão de dizer que quando falo da “igreja branca” não estou me referindo às pessoas “brancas” que estão na igreja (ao menos não de maneira direta). Indivíduos, brancos e brancas, não precisam se acharem tanto. Eu estou falando necessariamente de um modelo de igreja que foi construído com padrões determinados de teologia, de construção de referências de vida cristã, e de formas de conhecer a Bíblia, a Deus e a Fé.

O neocalvinismo, por exemplo, que está cada vez mais assentado no governo Bolsonaro (e cada vez mais o apoia) hoje, tem como seu principal articulador e formulador o teólogo e político Abraham Kuyper, um holandês, no século XIX. Kuyper, por sua vez desenvolveu uma ideia de “cosmovisão cristã” a partir da leitura da obra de James Orr, um escocês, e que foi influenciado por Wihelm Dilthey, um alemão. Uma construção teológica nasce em quintal branco, masculino e europeu, e isto é universalizado como genuína compreensão de Deus, da bíblia e “teologia de verdade”. Isto é a igreja branca.
Isto é um problema? Obviamente que sim. Neocalvinistas em torno do governo Bolsonaro estão comprometidos com uma visão de livre mercado, apoiam políticas hostis à imigrantes, negam o escravidão e os efeitos do racismo na sociedade brasileira, e rezam em uma cartilha neoliberal que moraliza e responsabiliza excessivamente o indivíduo, enquanto poupa e sacraliza a estrutura (por mais desigual, homofóbica, violenta e racista que a estrutura possa ser).

O que une pentecostais e neopentecostais, calvinistas e luteranos, batistas ou metodistas, em maior ou menor grau, em uma frente de conservadorismo que cada vez mais surpreende e assusta, com seu discurso de ódio nas relações, preconceituoso nas interações, violento na política e ganancioso na economia, é uma identidade branca da igreja que herdamos, ou a branquitude da identidade da mesma.

O que está sendo exposto são os limites de uma igreja estruturada no imaginário branco de ser igreja. De cara, este imaginário é racista. Mas ele também hostiliza os pobres, é violento, moralizador e punitivista (ou culpabilizador). Isto é a igreja branca, e ela precisa deixar de existir. Isto é um modelo de igreja que formou e dominou o Brasil na sua organização colonial, escravista, exploradora e que “batizou” a elite e seus privilégios.

Ronilso Pacheco é autor de “Ocupar, Resistir, Subverter: igreja e teologia em tempos de violência, racismo e opressão” (Ed. Novos Diálogos)