Ariovaldo Ramos: ‘A revolução não precisa prescindir da fé’


Para o pastor, convivência entre política e religião requer a superação de preconceitos, mas sem atropelar a laicidade do Estado

Ariovaldo Ramos: 'A fé tem de ser sempre pessoal, intransferível, mas acima de tudo voluntária. Nunca sob coerção de espécie alguma. Então, o Estado não tem de se preocupar com doutrinas religiosas'

Equilíbrio distante. Fé e política misturam-se e se repelem, a depender dos ventos, dos interesses, da conjuntura. Na opinião do pastor Ariovaldo Ramos, cuja biografia é feita de fé e de militância política, a convivência é realmente dura e complexa, mas tem melhorado. Na opinião dele, os partidos e organizações de esquerda precisam superar aquilo que ele denomina “desconfiança e preconceito” para com as religiões em geral e, em especial, para com os protestantes e neopentecostais, se quiser dialogar com esses setores. Mas alerta: sem atravessar a fronteira da laicidade do Estado.

Ramos também destaca que igreja não deveria ser espaço para campanha eleitoral. Ele também diz que tem orado diariamente pelo ex-presidente Lula, que no próximo domingo, 27, faz aniversário.

Esta entrevista com o pastor Ariovaldo foi concedida à Revista Reconexão Periferias, que no mês de outubro teve como tema principal a relação entre fé e política. O mesmo projeto realiza nesta quinta-feira (24), uma roda de conversa sobre o assunto, com a presença de estudiosos e religiosos de diferentes credos. O encontro será realizado na sede da Fundação Perseu Abramo e poderá ser acompanhado também pela internet.

Confira a entrevista:

Há aspectos inconciliáveis entre uma proposta de Estado laico e algumas crenças religiosas. A adesão estrita aos textos bíblicos, por exemplo, aponta como pecado a homossexualidade, o aborto, a fé em outras divindades, só para citar algumas das divergências. Como os setores políticos que creem na separação entre religiosidade e espaço público podem agir diante dessa dicotomia?

De fato, a religião tem suas peculiaridades, idiossincrasias e tabus, suas crenças e expectativas e escatologias (doutrinas sobre o fim dos tempos). Mas isso, que pode colocar as religiões em oposição, não têm nada a ver com Estado. O Estado tem de ser laico. Em que o direito ao culto seja totalmente preservado e em que seja vetada a possibilidade de que qualquer religião se utilize do Estado para se impor.

A fé tem de ser sempre pessoal, intransferível, mas acima de tudo voluntária. Nunca sob coerção de espécie alguma. Então, o Estado não tem de se preocupar com doutrinas religiosas, desde que estas não tentem se impor sobre as demais. O Estado trabalha com o cidadão, independente de sua cor religiosa. O cidadão é regido pela Constituição. E as religiões e os religiosos precisam ter essa consciência: o Estado deve se manter isento de qualquer influência religiosa.

Os políticos também têm de aprender isso. Um coisa que me preocupa é quando os políticos visitam as igrejas, de vários credos, para fazer suas campanhas. Esses espaços deveriam ser vedados aos políticos num Estado laico. Os políticos não deveriam usar esses espaços para fazer campanha: isso é complicadíssimo. Nenhum político deveria ser candidato em nome de uma religião. Isso para mim é uma incoerência.

Política é um espaço e um exercício também de esperança e, por que não, de fé, num mundo novo e melhor. De que maneira isso pode ser demonstrado aos religiosos?

Qualquer exercício humano contém esperança, porque, no mínimo, aguarda ser realizado, aguarda ser bem sucedido. Aqui, todos se encontram. Todos querem usufruir dos direitos básicos, pelo menos. Neste sentido, a política pode trazer os valores da civilização vigente para o topo da discussão.

O político não pode dizer que está privilegiando a fé X ou Y. E nem pode invocar os elementos religiosos. Então, a política tem de trabalhar na lógica da modernidade que estabeleceu o Estado de Direito. Deve se alavancar a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Isso satisfaz a maioria das religiões que disputam espaço no Ocidente.

Certas crenças religiosas pressupõem que aqueles que não comungam da mesma fé não estão apenas enganados, mas errados e, pior, condenados ao castigo divino. Se a política é a arte de conectar os diferentes, como lidar com esse fundamentalismo?

As religiões são, por definição, antagônicas, porque cada qual vai professar sua fé e adorar a seu deus, que nem sempre coincidem. A política não é a arte de conectar religiões, é a arte de conectar cidadãos e cidadãs. O que a política tem de garantir em termos religiosos é a liberdade de culto. Mas jamais tentar criar soluções comuns, como uma teologia comum a todas, ou um acordo de fé, como a tentativa de implementar educação religiosa.

Propostas sincréticas: isso não é papel da política. Aliás, não deve haver ensino religioso nas escolas públicas, sob hipótese alguma. A política não deve nem pensar em tentar conectar religiões. Não deve promover encontros interreligiosos. A arte da política é garantir direitos aos cidadãos e cidadãs.

A esquerda tem sido frequentemente associada à aversão pela fé e religiosidade. Especialmente por causa da experiência soviética e, em menor escala, pela cubana. Lideranças protestantes costuma apontar perseguição a pastores em Cuba. Como tem sido a experiência da esquerda brasileira nessa relação entre fé e política?

A relação da esquerda brasileira com fé e política é um tanto complexa. Porque as perseguições aconteceram mesmo, não podem ser negadas, e ainda acontecem. A esquerda nem sempre foi simpática à pregação de qualquer fé. À minha fé, por exemplo. A gente percebe que a esquerda tem um quê de preconceito com a fé, em maior ou menor grau. Isso melhorou muito com a Teologia da Libertação, principalmente, e depois, entre os protestantes, com a chegada da Teologia da Missão Integral, que eu subscrevo, mas ainda há muita desconfiança, permanece aquela ideia de que religião é o ópio do povo, portanto uma inimiga da revolução e da libertação humana.

Isso é complicado porque faz com que muitos da esquerda não consigam conversar com os religiosos, porque estes percebem a desconfiança da esquerda para com eles. É uma relação complicada. Mesmo quando você é manifesta e comprovadamente de esquerda, quando se levanta para falar, nota a pecha que existe sobre nós. Assim como religiosos acham incompatível ser de esquerda, há muitos de esquerda que pensam a mesma coisa. Esse é um aprendizado mútuo: vamos ter de aprender. Fé não colide necessariamente com revolução. E a revolução não precisa prescindir da fé.

Como tem sido a sua experiência pessoal nessa tarefa de tentar dialogar com esses dois mundos, fé e política, aparentemente tão inconciliáveis?

Nossa experiência não tem sido boa, porque a gente percebe essa desconfiança. Eu diria, esse preconceito. E lutar contra preconceito é algo muito complicado. Mas está melhorando: cresce a percepção de que há religiosos revolucionários e de que a esquerda não é bicho papão. Tem tudo a ver, por exemplo, com os princípios protestantes. Não tem sido uma experiência fácil, mas melhorou.

A esquerda também tem seus fundamentalismos. Mas eu, de fato, não consigo ver fé e religião como algo inconciliável. O que dificulta essa relação, muitas vezes, é a falsa impressão de que um Estado laico é necessariamente um Estado ateu. Até porque o Estado não pode ser nem pró nem contra Deus. O Estado é um fenômeno eminentemente humano. Um espaço comum, onde, inclusive, a fé possa ser livremente praticada. Desde que não tenha a intenção de assenhorar-se do Estado. A fé e o Estado são fenômenos humanos, portanto podem conviver. A fé que eu professo, a protestante, reconhece que não se deve administrar o Estado a partir da religião, e sim ajudar os que têm fé a colaborar na administração do Estado.

Alguma sugestão para o PT se posicionar em relação à fé e religiosidade nas eleições do próximo ano?

A minha sugestão para o PT é, primeiramente, assumir que esse fator fé é cada vez mais preponderante no Brasil. Ponto. Segundo, aprende a conversar com esse público. Nesse sentido, sugiro ao partido que converse com os religiosos de esquerda para saber qual a melhor maneira de estabelecer esse diálogo com esse povo, sem atravessar a fronteira da laicidade do Estado.

Mas fazer de conta que a religião, ao final, não afeta as coisas, é uma ingenuidade. As religiões precisam ter expectativa de que não perderão espaço nem viverão em um mundo onde seus valores serão atacados o tempo todo. Se um religioso achar isso, ele vai imediatamente reagir. Então, o partido tem de saber que se vai trabalhar pelos direitos de uma minoria, que porventura resvalem em questões teológico-doutrinárias, tem de saber como falar disso, como defender isso sem que os religiosos se sintam atacados.

O partido precisa aprender a falar de maneira mais global sobre a proteção da pessoa humana, o fim da discriminação, mas não eleger particularidades que vão provocar reações emocionais por falta de melhor explicação.

Você é uma pessoa de fé. Então, queremos perguntar se você têm orado pelo Lula e se você acredita que há uma dimensão espiritual para o drama que ele vem vivendo desde que foi preso.

Sim, eu oro pelo Lula. Eu reconheço que ele é um preso político que tem sido deliberadamente perseguido. Eu oro por ele como pessoa humana, que tem as suas dores, suas perdas, suas angústias,. Tive o privilégio de visitá-lo em Curitiba. Já orava antes e passei a redobrar minhas orações.

Oro para que ele mantenha a serenidade que tem demonstrado em suas entrevistas, oro para que a resiliência dele nunca esmoreça. Oro principalmente para que ele seja libertado, para que o Estado de Direito seja restabelecido. Oro para que seus companheiros de partido nunca se esqueçam disso: não haverá nenhuma base sólida para a democracia sem a retomada do Estado de Direito, e que não haverá retomada do Estado de Direito sem o fim de toda a prisão política.

Enxergo, sim, uma dimensão espiritual para o drama que ele vem vivendo, mas essa dimensão não é a do castigo, mas a da perseguição. Jesus Cristo disse que em nome dele e dos valores que ele esposava, muitos seriam perseguidos. E que quando isso acontecesse, os perseguidos deveriam se rejubilar porque isso os colocam no mesmo patamar dos profetas. Há uma dimensão espiritual de perseguição a tudo que signifique igualdade, justiça, igualdade de possibilidades.

Tudo o que signifique resolução das diferenças. As escrituras dizem que há um espírito no mundo que ataca tudo o que o Cristo ensinou. Contra a pessoa do Cristo e contra a luz que ele disseminou. Para mim, é nessa dimensão espiritual que estamos travando essa batalha.

Rede Brasil Atual