AS DUAS FILHAS DA ESPERANÇA(in facebook)
Pastor Ed René Kivitz
Abraço todos aqueles que se perguntam porque as ruas não foram ocupadas para manifestações de apoio aos policiais militares mortos no cumprimento do dever ou brutalmente assassinados nos portões de suas residências e diante de suas famílias; presto devidos respeitos a todas as famílias vitimadas pela tragédia da violência urbana, pais e mães que perderam seus filhos num latrocínio, numa tentativa de assalto, ou num sequestro sem final feliz; filhos e filhas que perderam seus pais pelo ato indesculpável de criminosos inclusive juvenis; sou solidário com todos aqueles que se incomodam com o discurso de direitos humanos que, às vezes, parece privilegiar a defesa daqueles considerados a escória do mundo; manifesto minha sincera admiração a todos os profissionais dos serviços públicos que não sacrificaram sua consciência e não se venderam, mas, ainda que pisando na lamaçal, trabalham com honradez, honestidade e excelência para o bem comum – o Brasil seria inviável não fosse a multidão de homens e mulheres de bem que envergam fardas e togas e fazem a precária máquina pública funcionar.
Mas hoje levanto minha voz para afirmar que o assassinato de Marielle Franco é um crime hediondo. Um ato cruel, idealizado, deliberado, planejado e executado por espíritos degenerados ao limite mínimo da ser humanidade. Mas é também uma brutalidade que expõe a sociedade brasileira ao penúltimo limite da barbárie.
Primeiro, porque alguém, propositada e “em plena luz da noite”, executa com quatro tiros na cabeça uma vereadora daquela que é talvez a mais popular e internacional cidade do Brasil. Segundo, porque não falta claque para aprovar, aplaudir e ou justificar o dantesco ato criminoso.
O vergonhoso estado de corrosão moral e espiritual em que se encontra nossa sociedade se pode perceber também na fabricação de falsas informações e respectivas interpretações e explicações e, acima de tudo, comentários fazendo juízo de valor da vida e da história da vítima do crime inominável.
Todo e qualquer atentado contra a vida humana é injustificável. Não há atenuantes para a execução sumária de um ser humano. Caso você acrescente uma adversativa, apenas um “mas” sequer, à afirmação de que o crime que tirou a vida de Marielle Franco é absolutamente inaceitável, temo que você já tenha transposto o limite da barbaridade. Caso não considere desumana a consciência que determina tal crime, receio que já tenha colocado os pés no último degrau da escada que leva ao abismo para o qual caminha esse mundo sem Deus.
As forças do poder e seus ignorantes simpatizantes e funcionários mal pagos se ocupam em produzir fake news, como se houvesse alguma justificativa para assassinar. Não é admissível matar. Caso você acrescente um “há controvérsias” quando se trata de “mulher negra bissexual que defende bandido”, você é um bárbaro, uma bárbara. Está aquém dos princípios da civilidade e habita o mundo da selvageria onde impera a lei do mais forte e não entram em discussão os valores e as virtudes que colocam o ser humano acima do animal.
É bem verdade que os bárbaros já ocupam as ruas das cidades brasileiras, e o Rio é apenas um exemplo infeliz e nefasto. A promiscuidade das fronteiras entre o crime organizado, as milícias e o poder público é suficiente para demonstrar a calamidade social onde estamos mergulhados. As perguntas “quem matou Marielle” e “a quem interessava a morte de Marielle Franco” podem receber muitas respostas. A execução pode ter sido orquestrada por aqueles de índole fascista que acreditam no extermínio da população indesejável – pobres, negros, gays, ativistas defensores de bandidos, como via de solução para a ordem pública. Outra possibilidade está na bandidagem, que pode ter decidido mandar um recado aos generais, uma espécie de demarcação de território e delimitação de autoridade: aqui quem manda é o crime, o comando é nosso, nós de bermuda e farda, nós que matamos e estupramos quem quisermos a hora que bem entendermos, nós que assassinamos descaradamente com munição e armamento comprado oficialmente para a forças militares do país. A elite criminosa é também responsável: nós dignatários proprietários das comunidades, nós que controlamos a distribuição da água, do gás, das drogas, loteamos terrenos e controlamos o ir e vir do cidadão, nós, o estado paralelo. Também está no banco dos réus o tal sistema, o establishment – esse sem rosto, sem face, sem nome, incapaz de suportar o protagonismo de alguém que emerge da base da pirâmide gritando “o rei está nu”, prefere matar e aniquilar do que se render ao fato de que uma mulher negra favelada e bissexual tem razão no que diz.
Em todos os casos, incluindo outras hipótese e teorias conspiratórias, estamos diante da barbárie. A relutância de parte da sociedade em admitir o genocídio da juventude pobre e negra, a crescente militarização dos aparatos estatais e práticas de abuso e violência nas políticas de segurança pública, e o absurdo do crescimento de uma campanha presidencial construída na exacerbação da cultura de ódio, que afirma com naturalidade que “bandido bom é bandido morto”, implicam um perigosíssimo flerte com o que existe de mais sombrio na alma humana.
Mas é preciso ter esperança, como nos ensinou Paulo Freire. Conjugar a esperança do verbo esperançar, “porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo”.
Até a noite de sua morte Marielle Franco era apenas uma brasileira. Uma brasileira das boas. Deu de ombros às adversidades de seu lugar de origem, superou os descaminhos que se apresentam com peculiaridades sinistras nos ambientes de vulnerabilidade social, estudou, trabalhou, adquiriu consciência cidadã, abraçou uma causa, tornou-se ativista respeitada e admirada, filiou-se a um partido, disputou eleições, ascendeu legitimamente ao Parlamento, e exerceu seu primeiro mandato como vereadora fiel às suas crenças e valores. Como diz o outro, venceu na vida. Até que sua vida foi covardemente ceifada.
O feitiço, porém, virou contra o feiticeiro. Marielle não existe mais. Foi transformada num símbolo de luta e resistência. Mais um ícone a alimentar a utopia de uma geração que despertou não apenas para o desejo por outro mundo possível, como também para o teimoso engajamento que pode fazer esse mundo acontecer.
Marielle já não é mais uma pessoa, um RG com nome e endereço, uma biografia localizada na sua rede primária de afetos. Marielle agora é símbolo, é ícone, é avatar. Milhares de meninas pobres e negras ocupam as ruas gritando MarielleVive. Os muros das cidades amanhecem com pichações de MariellePresente.
“A esperança tem duas filhas lindas”, disse Santo Agostinho. “A indignação e a coragem”. As ruas estão cheias de legítima indignação. Resta saber se também se encherão de coragem. Pois a única resposta aceitável à covardia do crime sistêmico é a coragem da práxis colaborativa da multidão que caminha animada pela esperança de um mundo de justiça e paz!
Pastor Titular da IBAB - Igreja Batista de Água Branca