Por Chico Castro
“Quosque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? Quandium etiam furor iste tuus nos eludet? Ad quem finem sese efrrenata iactabit audácia?” Foi assim que Cícero[106 A.C-43 A.C] escrevendo em Latim , iniciou um dos mais belos e meditativos textos da literatura clássica universal, As Catilinárias “Até quando, enfim ,ó Catilina, abusará da nossa paciência? Por quanto tempo ainda teu rancor nos enganará? Até que ponto a (tua) audácia desenfreada se gabará”? A situação vivida pela sociedade brasileira em pleno século XXI força a imaginação a recuar o relógio do tempo, para, enfim, constatar o desprezo que a classe política sempre teve na triste história dos povos em todas as épocas. A decisão do STF de manter o senador Renan Calheiros na presidência do Congresso Nacional é uma afronta ao bom senso e envergonha mais a ainda a justiça brasileira.
Marco Túlio Cícero, não por uma simples coincidência, foi um dos mais ilustres senadores de Roma.A diferença entre o passado e o presente, é que naquela época, para ocupar tão elevada posição, era preciso ter o pretendente uma sólida e reconhecida formação acadêmica e intelectual. No ano 63 A.C, na condição de cônsul, tomou a frente de uma grande e grave crise política ao enfrentar a conjuração de Catilina, em razão da pretendida e depois fracassada tomada do poder comandada pelo seu principal opositor. Usando o poder da palavra na tribuna do senado romano convenceu seus pares, por meio de efusivos discursos,a condenar todos os envolvidos à morte. Catilina, ao tentar fugir, foi morto em combate pelos defensores da república, que a todo custo se voltavam contra as pretensões de implantação de um reinado por tão pretensiosos golpistas.
De nada adiantou a luta de Cícero para a manutenção da República Romana.Com o assassinato de Júlio César [que havia dado os primeiros passos para a instalação da monarquia absoluta] perto do Teatro Pompeu no ano 44 A.C, assumem as rédeas do poder Marco Antônio[amante da rainha Cleópatra, do Egito], Otávio [depois cognominado Augusto César, imperador quando Jesus Cristo nasceu na Palestina] e Lépido que, a despeito de toda admiração que tinham por Cícero, tramaram a morte do grande tribuno, fato que se deu em Fórmia, uma localidade quase fora dos limites territorias da Itália.Por ordem de Marco Antônio os executores cortaram mãos e cabeça do preclaro orador, para serem exibidas ao público na frente do fórum da Cidade Eterna. Enterrava-se a república [criada em 510 A.C] e nascia a saga do império romano, movido à espada e ao dinheiro, duas colunas causadoras das mais sanguinárias guerras de conquistas contra povos de todo o mundo antigo.
A decisão do STF de fazer “uma meia sola” ao impedir Renan Calheiros de permanecer na linha sucessória presidencial, mas mantendo-o como presidente do Congresso Nacional,desmoraliza a mais alta corte de justiça do país e enterra de vez a combalida república brasileira.De agora em diante não há como esconder que uma guerra era travada nos bastidores e que ganha foro de uma luta aberta entre os poderes, ao colocar mais pimenta numa crise, que parece ter saído da esfera econômica para invadir a seara do judiciário. A linha fronteiriça que separa uma monarquia absoluta de uma democracia de caciques, é muito frágil e cheia de contornos e similitudes. Creio ter sido Maquiavel quem fez uma distinção didática entre as duas formas de governo. No primeiro caso, numa monarquia, o poder é hereditário e vitalício, enquanto que, no segundo caso, a república, o poder,em tese, é temporário e renovado a cada eleição.
Mas desde 1889 a regra básica que distingue as duas formas de governo nunca foi levada a sério neste país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza. O exercício do poder sem limites marcado por uma certa autoridade unipessoal do presidente nunca teve uma linha demarcatória clara entre os ditames da monarquia derrotada e a assunção dos republicanos vitoriosos. Os dois primeiros presidentes do Brasil assumiram o poder pela força do dinheiro e
da espada. Depois da eleição de Prudente de Morais, o primeiro a chegar à presidência pelo voto, todos os pleitos, inclusive o último, o que levou Dilma Roussef pela segunda vez a subir a rampa do palácio do Planalto, foram marcadas por fortes indícios de fraudes, roubos, assassinatos e compra de votos. Quanto ao papel constitucional do imperador pela Carta de 1824 em comparação ao papel dado ao presidente da república, este pode, se quiser, se comportar segundo o pensamento unilateral de um monarca.O presidente da república é um rei sem coroa.
De um modo análogo, mas inverso, os punhais de Cássio de Brutus que levaram Júlio César à morte, não destruíram o mito daquele que consolidou a monarquia absoluta em Roma. O STF, ao livrar Renan Calheiros do vexame de ser destituído da presidência do Senado, não aumentou de maneira alguma o prestígio dele como político. Se, de um lado, o episódio mostrou para a sociedade brasileira que até mesmo a mais importante corte de justiça do Brasil é também cartorial e funciona para justamente fazer acepção de pessoas, por outro lado, a figura de Calheiros se tornou abjeta para a opinião pública, à medida em que declarou cinicamente que a decisão dos ministros foi um ato “patriótico.” Dizem que o perdão foi uma troca. O senado não vai votar o projeto que trata do abuso de autoridade por parte de juízes.
Assim como Júlio César intencionara fazer de seu sobrinho Otávio César o legatário de todo o poder romano, o STF colocou Renan acima da toga e da sociedade brasileira a dar um cheque em branco para uma possível desobediência civil coletiva. Se porventura, um oficial de justiça for à minha casa –Deus me livre disso -também não assinarei a intimação nem tampouco irei cumprir uma ordem judicial. Esse gênero de partilha de conveniências escandalosas entre os poderes republicanos comporta sempre uma pitada de safadeza pelo grande risco que corre a figura ímpar do STF de se tornar, assim como a classe política em geral, uma pedra de tropeço na já avariada e sofrida sociedade brasileira. Se os ministros queriam salvar Renan Calheiros acabaram por jogar toda a credibilidade de justiça na lata de lixo da história.
Da mesma maneira como Marco Antonio e Cleópatra viviam uma intensa paixão na cálida Alexandria –embora a opinião pública de Roma considerasse um romance um escândalo, já que a rainha do Egito era feia e não era páreo para a beleza de Fúlvia -, os pombinhos não imaginavam o perigo que corria pelos idos do ano 30 A.C. Os melhores historiadores romanos Plutarco, Suetônio e Plínio se importavam muito com a vida alheia. Sabia-se em Roma que Marco Antonio recebera de Fúlvia verdadeiras lições de amor, e que Cleópatra já o pegara um craque em função do aprendizado que tivera com a esposa traída. Fúlvia, louca de ciúmes, chegou a organizar uma revolta para destituir o marido de suas funções e assim dominar Cleópatra, e, por consequente, o mundo.Mas tudo deu errado.Ao empreender uma viagem para o Egito veio a falecer pelo meio do caminho.
Assim como Fúlvia, o STF vai morrer a caminho do deserto da traída opinião pública. E Renan Calheiros, anfitrião de um lauto jantar à moda romana oferecido para os mais ilustres convivas depois da vitória, ganhou uma batalha, mas certamente perdeu a guerra junto ao imaginário coletivo do povo brasileiro. Marco Antonio cercado pelas tropas de Otávio César propôs num ato extremo um desafio pessoal ao presumido vencedor. Ao que lhe respondeu César: “Tu dispões de numerosos caminhos que conduzem à morte.” Mesmo que o senador tenha desafiado as leis brasileiras e seja paradoxalmente inocentado por quem deveria culpá-lo, a morte política dele é uma questão de tempo. O próprio poder irá regurgitá-lo, pois uma alma sem luz e tão sebosa não pode viver num organismo já tão apodrecido como o da classe política brasileira.
Chico Castro é poeta e historiador.