PARA FLAVIO DINO, DORIA É O BERLUSCONI BRASILEIRO


O governador do Maranhão, Flavio Dino, avalia que as eleições de 2016, sob o impacto da Lava Jato, demonstraram a descrença na política e o surgimento do Berlusconi brasileiro, que seria o prefeito eleito de São Paulo, João Doria; "Qual a resultante do fortalecimento desse bloco no terreno da política, já que gostam tanto de falar de Operação Mãos Limpas, sem entender direito as consequências? Nós temos uma situação similar, meio italiana nesse sentido também, que é 'berlusconização' da política. Agora nós temos o próprio Berlusconi que é o João Doria", diz ele

Por Renato Rovai, na revista Forum

O governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), concedeu entrevista exclusiva ao blog em que, a partir dos resultados das eleições do último domingo (2), faz uma análise do atual momento político do país.

Para Dino, que em 2014 acabou, de forma histórica, com a era Sarney em seu estado ao vencer as eleições, a forma como a Lava Jato foi instrumentalizada, inspirada na Operação Mãos Limpas, da Itália, somada a outros fatores, provocaram uma “berlusconização” do país com seus primeiros frutos já dando as caras. A vitória do empresário João Doria (PSDB) em São Paulo seria um exemplo dessa situação.

Confira a íntegra.

Como vai, governador?

Tudo bem, Renato. Sobrevivendo…

É exatamente essa a palavra para definir esse momento…

É verdade… É um desafio. Mas já era uma tendência clara. A gente veio em uma viragem à direita muito nítida. O eleitor de 2014 foi o último suspiro de uma etapa da luta da esquerda no Brasil, e agora acho que esse quadro eleitoral força uma revisão.

Qual a sua avaliação desse resultado em nível nacional, não só do ponto de vista do Maranhão, mas de tudo o que aconteceu e o quanto isso tem relação com a eleição de 2014, manifestações de 2013, o próprio impeachment?

Nós tivemos uma trajetória ascendente do campo democrático, progressista e de esquerda de, praticamente, 1982 até 2014, de modo continuado. Se você observar a eleição de 1982, o Brizola ganhou no Rio, por exemplo, como um símbolo. Um mês depois veio a Constituinte, aí depois veio a campanha das Diretas, a derrota do Maluf. Na Constituinte, uma articulação progressista, que conseguiu contribuições importantes. Em 1989, o Lula vai para o segundo turno. Enfim, mesmo com derrotas, era uma trajetória que apontava para as vitórias adiante, porque Lula perdeu em 1989, mas em 1988 o PT havia elegido a Erundina, Olívio Dutra, em Porto Alegre.

O que acontece é que em 2013 houve uma disputa ideológica em torno do sentido daquelas manifestações e houve um movimento extraordinariamente que surgiu com uma agenda de esquerda. Era uma agenda de fortalecimento e ampliação de um serviço público de transporte, de mobilidade, uma agenda classicamente à esquerda, que acabou sendo fantasticamente apropriada ideologicamente em uma outra direção. Há uma mudança da palavra de ordem principal, que era a questão dos 20 centavos, da mobilidade. Virou a questão da corrupção. Acho que o marco zero está ali, nessa mudança do sentido das manifestações de 2013.

Em 2014, vem um ponto que desequilibra esse jogo, que é a estruturação do partido da Lava Jato, desse bloco de poder. Qual a resultante do fortalecimento desse bloco no terreno da política, já que gostam tanto de falar de Operação Mãos Limpas, sem entender direito as consequências? Nós temos uma situação similar, meio italiana nesse sentido também, que é “berlusconização” da política. Agora nós temos o próprio Berlusconi que é o João Doria.

Quais são as características? Um afastamento da população da política, resultados indo na direção da abstenção, voto nulo e branco. Ou seja, uma descrença, uma crise de representação muito aguda, uma fragmentação do sistema partidário, de forma que você consegue identificar derrotados, mas tem dificuldade de identificar vencedores, porque tirando essa vitória notável do Doria, em São Paulo, você vê que o próprio PSDB teve derrotas. O PMDB teve derrotas expressivas. Então, temos uma desestruturação de todo o sistema institucional e, em terceiro lugar, que é o elemento que nos diz respeito diretamente, que é uma profunda crise da esquerda. Como vimos, fomos reduzidos a praticamente 20% da sociedade. Quando você olha para São Paulo, Haddad mais Erundina, dá 20%. No Rio, Freixo mais Jandira, dá 20%. João Paulo em Recife, 20%. Alice, em Salvador, 17%. Saímos de um modelo em que nós representávamos um terço da sociedade e disputávamos o centro para uma perigosa tendência. A esquerda foi pulverizada e reduzida a 20% praticamente da expressão institucional da política. Isso, naturalmente, não pode ser afirmado de forma aritmética. O pensamento de esquerda, a meu ver, é maior que 20% da sociedade. No que se refere ao jogo institucional, nós fomos reduzidos a um quinto. Qual o problema? É que com um quinto você não polariza o centro político, porque não há força suficiente. Isso explica por que nós ficamos fora do segundo turno de Porto Alegre: foram dois candidatos mais à direita. Nós estamos diante desse desafio enorme, de crise de representação política, fragmentação da esquerda, que tem dificuldade de se colocar para a sociedade em outros termos. E aliado a isso você tem uma recessão e um desemprego brutal, que naturalmente leva à ‘direitização’ da política. O nazifascismo surgiu do ventre de uma grande crise econômica. Crises econômicas agudas levam a saídas autoritárias, normalmente. A crise de 1929 foi o combustível do nazifascismo dos anos 1930. Nós vivemos isso em termos internacionais. Não somente na política brasileira. Mas qual é o desafio? Falar de esperança e de propostas que sejam galvanizadoras no sentimento, no quadro objetivo de muitas derrotas, porque há a Lava Jato como território hostil. A sociedade indiferente à política, o desemprego e a recessão dizimando a luta social. Não é uma coisa simples. A vantagem é que a história não acaba, você não pode ser fatalista de achar que tudo acabou.

Isso que eu ia te perguntar, Flávio. Esses processos costumam ser cíclicos e, de alguma forma, a sociedade tem outra velocidade, inclusive por conta das redes digitais e da globalização. Você não acha que esse ciclo pode durar menos do que se anuncia nesse momento?

Eu tenho convicção disso. Porque uma sociedade perversamente desigual e injusta tem impasses muito profundos que você não consegue resolver. A meu ver, com políticas que reforcem exatamente a desigualdade, injustiça e a negação de direitos, isso conduz a uma inviabilização da sociedade, por que significa, por exemplo, aprofundar a violência.

Acho que é um ciclo. Mas também acho que acertando o movimento nós conseguimos sair disso. Agora, o que não pode é acreditar no princípio da inércia. É aquela história do Marx lá no Manifesto: em última análise, “o capitalismo cairá de podre. O proletariado é o coveiro do capitalismo”. Bom, tem que ter o elemento subjetivo. Não adianta uma subjetividade conduzir a uma certa tendência histórica sem você, ativamente, construir os sujeitos para fazer com que essa objetividade se materialize nos fatos. Essa á principal questão, reorganizar nossos sujeitos históricos em um quadro profundamente adverso. Acho que houve uma desestruturação do nosso campo, você não pode acreditar num fatalismo às avessas, de no fim tudo vai dar certo. O que seria uma bobagem, não é o mais do mesmo que vai resolver. Acho que é uma revisão profunda em duas questões: primeiro, reconhecer que não se pode disputar eleição com agenda de denúncia, o que foi tentado em alguns estados. Pela agenda de denúncia do impeachment, do golpe, não é suficiente. É preciso, portanto, agregar um programa que seja prospectivo, porque não existe na sociedade voto de gratidão, por mais que as pessoas reconheçam os feitos do passado. Elas precisam acreditar que o que você apresenta vai ampliar benefícios para o futuro e, no mínimo, preservar conquistas ou ampliar benefícios. Essa é a primeira questão. Uma questão mais programática, eu diria, que demanda mais debate de atualização mesmo. Acho que aí a questão mais aguda é a agenda dos serviços públicos e da igualdade de oportunidades. Como você coloca isso muito claramente, é a questão que nos coloca em contradição, com esse modelo mais privatizado, centralizador. A gente tem que ir por aí, nesse sentido um pouco mais profundo de uma agenda de conciliação. Mas uma agenda de um viés distributivo mais agudo. E em segundo lugar, além dessa questão programática, a estrutura, porque em um quadro de defensiva, não se pode desperdiçar energia, não se pode desperdiçar forças. O povo do nosso campo fez isso intuitivamente. Ao fazer voto útil no Haddad ou fazer voto útil no Freixo, a sabedoria do povo…

Você tem que encontrar um jeito de repactuar as relações com o que se identifica mais claramente com a esquerda, mas também com outros rostos que podem e devem ser repolarizados, como o PDT, o PSD. Você tem que tentar um diálogo, apesar das dificuldades óbvias com cada um desses. Mas você tem personalidades. A própria luta social, movimento social, a mídia progressista. Você tem outros atores que não estão na burocracia partidária que você tem que traduzir em uma organicidade que seja expressão eleitoral desse pensamento, desse ideário. A grande lição é que hoje ninguém está em condição de fazer isso sozinho. Nem o PT, nem o PCdoB, nem o PSOL. Também vi algumas análises malucas dizendo que o PSOL é o novo PT. Isso é um delírio. Cá para nós. E nós do PCdoB não podemos apontar o dedo. Nós também estamos no mesmo barco. As derrotas que o PT colheu, nós também colhemos, com a exceção do Maranhão.

É isso que eu queria te perguntar. Você foi muito bem aí, percebe-se que tem um modelo que deu certo, queria que você falasse dele.

Acho que o nosso principal mérito para colher um resultado tão bom foi ter conseguido paradoxalmente manter vivo o sentimento da mudança. Em pouco tempo, um ano e meio, conseguimos mostrar para a população que é possível, ainda que de modo incipiente, claro, fazer mudanças assertivas na vida das pessoas, no modo de governar. Nisso nós conseguimos manter credibilidade, apesar do governo enfrentar dificuldades econômicas, fiscais, do desemprego na sociedade, a gente manteve um estoque e credibilidade para continuar falando de mudanças e a população acompanhar. O tempero principal foi a capacidade de em pouco tempo, com poucos meios, gerar alguns resultados simbólicos que mantiveram nossa capacidade de aglutinar o campo pela alta aprovação popular.

Quantos prefeitos vocês elegeram no Maranhão?

Somando PCdoB e aliados, são 217. Do PCdoB são 46. O principal partido. Os partidos que mais elegeram foram o PCdoB, em segundo o PDT e em terceiro, o PSDB, que aqui é o PSDB do B, aliado aqui também. Mas são os três principais partidos. Aí depois vem o PSB, que também é nosso aliado, aí vem o PT, que hoje também é nosso aliado. Então, temos um campo ampliado, que apoia o governo e elegeu 217, tendo como vértice esse apoio ao governo, que é liderado por um dirigente, um militante da esquerda. É aquela história: você só consegue um estoque de força capaz de polarizar outros setores e foi isso que a gente perdeu. O Lulismo só foi possível porque teve a força popular capaz de polarizar outros setores políticos. Na hora que a gente perdeu isso deu um conjunto de tragédias, que perdeu força própria e a capacidade de exercer uma força centrípeta, uma força de atração ou gravitacional, sobre outros setores. Aqui a gente manteve. Acho que por isso o resultado foi tão bom.

Parabéns, Flávio. Eu não consigo comemorar direito, porque a porrada no Brasil foi tão dura. Não bastasse a do Brasil tem a da Colômbia.

Pois é. É uma questão que alguns desses aspectos que a gente falou tem uma certa dimensão global, internacional. A crise da democracia é tão profunda que o principal líder político do planeta é um monarca, o Papa Francisco. Porque você tem a política muito deteriorada, isso é próprio das crises econômicas e da recessão. E dá nisso, um cara como o Flávio Bolsonaro, um farsante, faz 15% só no Rio de Janeiro. As pessoas estão comemorando a chegada do Freixo no segundo turno, detonando os paulistas, e eu falei: vamos fazer as contas. A votação da Jandira e do Freixo é exatamente igual a da Erundina e do Haddad. Só que lá para ir para o segundo turno teve um Bolsonaro que é pior que um Russomanno. Não dá para falar que o Rio é uma maravilha.

Russomanno, quando foi deputado comigo, tinha todos os problemas do mundo óbvios, mas pelo menos você consegue estabelecer minimamente um acordo semântico e uma gramática para, pelo menos, falar com ele. [Com Bolsonaro] É outra gramática, outro dicionário, outro mundo. É a barbárie, fora dos marcos da civilização, fora dos marcos da filosofia liberal, da civilização ocidental, como se fosse fora do pensamento grego, é outra coisa. Não dá para você realmente imaginar isso, fez 15% dos votos.