Fernando Gonzaga Jayme e Renato Nascimento Pena avaliam que o processo de impeachment de Dilma Rousseff, "dividindo a decisão do impeachment em duas votações é tão grave que causa nulidade absoluta da decisão proferida pelo Senado"; "A primeira questão a considerar é que a divisão do julgamento em dois quesitos não guarda correspondência com o texto constitucional", diz o texto; segundo a análise, "a sociedade brasileira, portanto, tem no Supremo Tribunal Federal a esperança" resgatar a Democracia
Por Fernando Gonzaga Jayme e Renato Nascimento Pena, no Conjur
O Senado Federal cassou no dia 31 de agosto o mandato da presidente Dilma Rousseff, eleita para exercer o cargo de mandatária maior da República no quatriênio 2014-2018.
O processo tramitou, aparentemente com observância do devido processo legal, a despeito de ter se caracterizado por intensas polêmicas e discussões jurídicas que debatiam a higidez do devido processo legal. Ao final, todavia, não poderia terminar sem a maior de todas as controvérsias, que foi o fatiamento da votação.
O vício do procedimento escolhido, dividindo a decisão do impeachment em duas votações é tão grave que causa nulidade absoluta da decisão proferida pelo Senado Federal.
A votação foi realizada em duas etapas, consistente na resposta a dois quesitos. O primeiro referente à caracterização do crime de responsabilidade e sua autoria que, respondido afirmativamente, conduziu Dilma Rousseff à perda do mandato de presidente da República.
O segundo e derradeiro quesito indagou a respeito da aplicação da pena de inabilitação para o exercício de função pública por oito anos, tendo sido respondido negativamente, por insuficiência dos votos necessários para o decreto condenatório. Em ambas as votações, exigia-se para a condenação, dois terços dos votos dos membros do Senado Federal.
A discussão tem partido do resultado da primeira votação que cassou o mandato da presidente, para sustentar que, da perda do mandato pela prática do crime de responsabilidade, a inabilitação para o exercício de função pública, por oito anos, seria efeito automático da condenação e que do quantitativo de votos obtidos, mais de dois terços, tornou despicienda a quesitação relativa à aplicação da pena de inabilitação para exercer função pública.
Procuramos analisar a questão guardando os necessários distanciamento e objetividade para apreciação técnico-jurídica do julgamento da presidente da República no dia 31 de agosto de 2016.
A primeira questão a considerar é que a divisão do julgamento em dois quesitos não guarda correspondência com o texto constitucional. O artigo 52, parágrafo único da Constituição da República dispõe que nos casos de condenação da presidente da República por crime de responsabilidade, para a qual se exige dois terços dos votos do Senado Federal a pena limita-se à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública.
O texto constitucional interpreta-se, portanto, que a aprovação do impeachment pelo voto de dois terços do Senado Federal representa a perda do cargo de presidente e, necessariamente, como efeito automático e necessário da perda do mandato, a inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública. Entendimento diverso acarreta uma situação paradoxal, pois a inabilitação para o exercício de função pública por oito anos advém, natural e automaticamente, da condenação por crime de responsabilidade.
Trata-se do ilícito mais grave imputável à presidente da República, por cuidar de violação a princípios constitucionais sensíveis. Destarte, quando a presidente é condenada por crime de responsabilidade é porque praticou atos atentatórios à Constituição. Com efeito, a suspensão dos seus direitos políticos, por prazo fixado constitucionalmente, é efeito automático da condenação por crime de responsabilidade.
Pois bem, o processo e julgamento da presidente da República por crime de responsabilidade é disciplinado na Parte Segunda, Título Único da Lei 1079/50, constituída pelos artigos 14 a 38, que regula integralmente o procedimento, desde o recebimento da denúncia até o julgamento. Havendo condenação por crime de responsabilidade a fixação da pena é regida pelo artigo 33 da Lei 1079/50, que harmonizado com a Constituição da República, é lido com a seguinte redação:
No caso de condenação, o prazo de inabilitação do presidente condenado para o exercício de qualquer função pública é de oito anos; e no caso de haver crime comum deliberará ainda sobre se o presidente o deverá submeter à justiça ordinária, independentemente da ação de qualquer interessado.
Assim, o primeiro reparo a ser feito ao procedimento adotado pelo Senado Federal é que se baseou em dispositivo legal inaplicável ao processo e julgamento do crime de responsabilidade imputado ao presidente da República.
O malsinado artigo 68 e seu parágrafo único, fontes de toda a cizânia, aplicam-se, apenas, nos processos e julgamentos dos Ministros do STF e Procurador Geral da República, conforme disposições contidas na Parte Terceira, Títulos I e II, da Lei 1079. A mencionada Parte Terceira estende-se do artigo 39, que define os crimes de responsabilidade imputáveis a Ministros do STF até o artigo 73, que trata da contempla aplicação subsidiária do Regimento Interno e do Código de Processo Penal.
Desta forma, inegavelmente é absolutamente nulo o julgamento realizado sob a égide de dispositivos legais inaplicáveis ao processo e julgamento do crime de responsabilidade do presidente da República.
Para os fins pretendidos, demonstrar a nulidade absoluta do julgamento realizado pelo Senado Federal no processo que implicou a cassação do mandato de Dilma, a rejeição da tese acima apresentada é de pouca relevância. Considerar o raciocínio desenvolvido até aqui como desprovido de juridicidade e razoabilidade, não afasta as abundantes absurdidades que ainda serão analisadas e que macularam o julgamento do dia 31/08/2016 de forma irremediável.
O exame das normas constitucionais aplicáveis ao processo de impeachment nos permite, também, concluir pela nulidade do julgamento. O texto constitucional é claro e explícito, lendo-se no art. 52, § único que a inabilitação para o exercício de função pública é efeito da condenação pelo ilícito que atenta contra os princípios mais caros à democracia. O impeachment e a inabilitação são indissociáveis.
Consequentemente, em razão de a inabilitação para o exercício de função pública ser corolário do impeachment, o julgamento teria de ser feito em etapa única, única e exclusivamente indagando-se ao plenário do Senado Federal se a presidente da República praticou crime de responsabilidade. A suspensão dos direitos políticos que a vedaria exercer função pública, insista-se, seria efeito intrínseco à condenação.
O fato de o Senado haver realizado duas votações, separadas, cujo resultado gerou perplexidade devido à contradição entre os dois vereditos caracteriza nulidade absoluta, sendo competente o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, para decretar a nulidade do julgamento e determinar o seu refazimento, livre das máculas que culminaram no reconhecimento da nulidade.
A contradição e a perplexidade viciaram às inteiras o veredito. O julgamento chegou a um resultado teratológico, condenou a presidente da República por crime de responsabilidade e deixou de apená-la por esse crime.
Conforme exposto, a confusão protagonizada pelo Senado gera a nulidade absoluta da votação que cassou o mandato de Dilma Rousseff. Isso porque a Lei 1.079/50, na Parte Segunda, que regula o processo e julgamento dos crimes de responsabilidade do presidente da República, no art. 38, determina a aplicação subsidiária do Código de Processo Penal (CPP).
Com efeito, como a Lei 1079/50 não dispõe a respeito das nulidades processuais, aplica-se ao caso o CPP, cujo § único do art. 564 sanciona com o decreto de nulidade a formulação deficiente dos quesitos quando de suas respostas não se extrai, com segurança, a vontade dos julgadores.
Veja bem, na primeira votação, por 61 a 23 os senadores reconheceram a prática e a autoria do crime de responsabilidade, tendo como efeito a cassação do mandato. A seu turno, na segunda votação, na qual indagou-se sobre a suspensão dos direitos políticos, o resultado foi positivo pelo placar de 42 a 36, afastando a pena por não haver sido alcançado o quórum para a condenação.
Observa-se que na segunda votação a presidente teve oito votos a mais do que o mínimo necessário para afastar a condenação. Os votos por ela obtidos entre a primeira e segunda votações aumentaram mais de 50% e os desfavoráveis reduziram praticamente um terço. A migração de votos a favor da presidente é um fenômeno que só se explica pela inexatidão dos quesitos submetidos a julgamento.
A propósito, ao menos um senador, Acir Gurgacz (PDT/RO), assumiu perante a sociedade brasileira que: “Temos convicção de que não há crime de responsabilidade neste processo. Mas falta governabilidade. E a volta da presidenta neste momento poderia trazer um transtorno ainda maior à economia brasileira". Com esses motivos, afastou a inabilitação para o exercício de função pública. Há alguma dúvida da contradição existente no julgamento realizado por este senador?
Evidencia-se, portanto, ter havido, na formulação dos quesitos confusão que produziu respostas viciadas pela contradição e perplexidade que afastam a higidez do julgamento realizado pelos senadores. Com efeito, o decreto de nulidade pelo Supremo Tribunal Federal é medida que se impõe, como a única possibilidade se corrigir o vício de manifestação de vontade dos senadores por ocasião do julgamento no processo de impeachment. A deficiência na quesitação viciou a manifestação de vontade externada pelos senadores no julgamento.
Com efeito, a presidente não foi efetivamente julgada porque os senadores não responderam à única indagação que lhes competia responder, cônscios de que a inabilitação para o exercício de função pública por oito anos é efeito automático e necessário da condenação por crime de responsabilidade.
O resultado causa perplexidade devido a diferença entre os resultados da primeira e segunda votações e a contradição entre os vereditos, condena pelo crime e isenta da pena a ele cominada. Trata-se de contradição absoluta.
Ainda que se diga ter havido uma maciça maioria favorável ao impeachment, a condenação ocorreu por um diferença de apenas 5 votos. Se o resultado tivesse sido 53 a 28 a decisão teria sido absolutória. Desta maneira, não é possível reconhecer que o julgamento é resultado da vontade livre e consciente dos senadores. Houvesse sido formulada quesitação correta o resultado do julgamento seria absolutamente imprevisível.
A decisão proferida pelo Senado, que condenou Dilma pelo crime de responsabilidade e a destituiu do cargo de presidente, mas não a inabilitou ao exercício de função pública, é nula e a votação deveria ter ocorrido em sintonia com o texto constitucional.
Como assim não se realizou o julgamento, o resultado está viciado pela quesitação imprecisa e errática que produziu um veredito inconciliavelmente contraditório. Desta maneira, houve flagrante violação do devido processo legal tornando ilegítima a decisão que cassou o mandato da presidente da República.
A sociedade brasileira, portanto, tem no Supremo Tribunal Federal a esperança de que por meio de uma decisão célere, independente e jurídica restaure a integridade da Constituição da República, prestigie a soberania popular, resgate a Democracia e assegure a todos, inclusive nossos netos, o futuro que eles merecem.
A cidadania brasileira há muito anseia por viver em um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, conforme preconizado no preâmbulo da Constituição da República.