Mais relevante que discutir a legitimidade da ascensão de Temer é a sociedade dialogar e exigir que o pacto social seja mantido, diz o jurista Pedro Serrano; "A ruptura traria muito pouco benefício em comparação com os muitos malefícios que poderá produzir para a maior parte da população, e para a sociedade como um todo, já que certamente fomentará a violência e as formas de atrito no ambiente social"
O governo Temer e a ameaça ao pacto social
Por Pedro Serrano, via Carta Capital
Após assumir o poder amparado em legitimidade questionável, o governo de Michel Temer teve início com declarações rumorosas de alguns de seus mais importantes ministros. Conjugadas ao plano apresentado no documento “Uma ponte para o futuro”, tais declarações indicam uma possível e perigosa ruptura com o pacto social brasileiro.
Vale lembrar que o Pacto Social não é obra do PT, nem de qualquer partido ou governo isoladamente. Sua construção é fruto de lutas de movimentos sociais e da sociedade civil organizada, consolidadas nas garantias e direitos estabelecidos na Constituição de 1988.
Dentre esses direitos está o acesso universal à Saúde, de que deriva o Sistema Único de Saúde (SUS), o maior sistema de saúde pública do mundo, reconhecido internacionalmente pela sua capilaridade, abrangência e relativa eficiência.
E uma das primeiras afirmações do novo ministro da Saúde, Ricardo Barros, foi exatamente sobre a suposta incapacidade do Estado em sustentar esse direito. O ministro chegou mesmo a dizer que o SUS precisará ser revisto e a aconselhar os brasileiros a aderir a planos de saúde privados.
Outro pilar importante do Pacto Social é a previdência, que, sob o pretexto de um suposto rombo e da necessidade de se cumprir metas fiscais, poderá sofrer alterações, como a ampliação do tempo de contribuição e da idade mínima para aposentadoria.
Curioso é que a previdência social sempre tenha tido suas receitas canalizadas para as mais diversas áreas atendidas pelo Estado, sem que isso fosse reconhecido como dívida. Mas quando o Estado se financia no setor privado, não apenas acata como dívida, mas também como prioridade em sua ordem de despesas.
E o tal rombo da previdência, resultante principalmente da dispersão das receitas previdenciárias pela máquina administrativa, precisa então ser sanado com o sacrifício justamente daqueles que trabalharam e contribuíram uma vida inteira.
Muito se tem falado também, desde que Temer assumiu, em cortes na área de assistência social e em uma possível redução do número de beneficiários do Bolsa Família, programa que, na última década, foi essencial para tirar milhares de pessoas da pobreza extrema e dinamizar a economia em pequenos municípios do País.
Isso sem falar nas ameaças às conquistas obtidas no ensino superior público, como o ProUni, o FIES e a política de cotas, e no cancelamento de obras do Minha Casa Minha Vida, instrumento que vinha sendo adotado para garantir a uma parcela da população de baixa renda o direito à habitação.
Nenhuma dessas iniciativas - as concretizadas e as propaladas - representam um ataque direto aos governos de Lula e Dilma que, convenhamos, foram até bastante tímidos na implementação de verdadeiros direitos sociais, adotando medidas sobretudo emergenciais como, por exemplo, a oferta de uma renda mínima para combater a fome e a contratação de médicos estrangeiros para garantir o atendimento à Saúde.
Esse conjunto de “maldades” significa, na verdade, um ataque aos Direitos Sociais que o Estado brasileiro demorou três décadas para construir e estruturar.
A ameaça de ruptura com essa rede de proteção social mínima articulada nos últimos 30 anos pode se traduzir, caso se dê com a radicalidade que se anuncia e em momento de crise econômica, em grave involução em todas as áreas mencionadas.
Por isso, mais relevante do que discutir a legitimidade da ascensão de Temer ao poder - ainda que seja pública minha posição contrária ao impedimento da presidenta Dilma, que considero inconstitucional e uma medida de exceção - é que a sociedade dialogue e exija que o Pacto Social seja mantido.
A ruptura traria muito pouco benefício em comparação com os muitos malefícios que poderá produzir para a maior parte da população, e para a sociedade como um todo, já que certamente fomentará a violência e as formas de atrito no ambiente social.
O que se espera é que o presidente em exercício Michel Temer, que é constitucionalista de formação e, segundo assegura o professor Celso Antônio Bandeira de Mello (uma das pessoas em que mais confio na minha vida pessoal), um homem honrado, de valores éticos consolidados, que conhece o valor dos direitos sociais para a vida humana, além de um político hábil, que sabe retroceder quando necessário, não siga adiante nesse projeto.
Caso contrário, deverá passar como autor do maior retrocesso social e civilizatório da história brasileira.